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Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade

Seminário Discente 2018

Resumos Mestrado


Alexis Ouellet-Simard


Uma interpretação do Mito de Sísifo à luz do Bhagavad-Gītā

Mestrando: Alexis Ouellet-Simard
Orientador: Professor Dr. Eli Brandão da Silva

Introdução
No presente projeto de mestrado, partimos de algumas pesquisas que revelam uma
ligação entre a filosofia de Albert Camus e o tratado teológico-filosófico hindu Bhagavad-Gītā
(BG). A partir dessas pesquisas, investigaremos a possibilidade de fazermos uma hermenêutica
do Mito de Sísifo (MS) utilizando como background alguns conceitos desenvolvidos no BG.
Considerando-se a influência da filosofia indiana no trabalho de Camus, parece-nos
plausível e relevante essa ligação entre Camus e o BG. De fato, Camus havia lido a BG em
1931 sob a orientação de Jean Grenier, ele próprio um grande conhecedor da filosofia indiana.
Além disso, os pensadores ocidentais que influenciaram muito Camus foram eles mesmos
influenciados pela filosofia indiana, dentre os quais, podemos citar Plotino, Santo Agostinho e
Nietzsche. Dessa forma, podemos notar influências diretas e indiretas dessa filosofia nos
escritos de Camus.
A partir disso, para realizar nossa pesquisa, dividiremos nosso trabalho em três
capítulos. O primeiro capítulo abordará alguns aspectos da vida e da obra de Camus, o segundo
abordara o BG e o último será a interpretação do MS à luz do BG, conforme elencaremos
abaixo.

Capítulo 1 – Albert Camus
1.1 Biografia
Como Camus teoriza a partir de experiências da vida, uma breve apresentação de sua
biografia nos será útil para entender seu trabalho. Nós, portanto, apresentaremos aqui que
Camus vem de uma família pobre na Argélia, que seu pai morreu na guerra quando ele tinha 1
ano de idade e que Camus sofria de tuberculose. Apesar das condições de vida aparentemente
difíceis, parece que Camus nunca deixou de apreciar as belas e simples coisas da vida. Além
disso, podemos perceber que a Segunda Guerra Mundial teve um efeito significativo em seu
trabalho. De fato, quando Camus chegou à cena literária de Paris no final da década de 1930,
havia uma atmosfera de tortura, tormento, desencantamento, desespero, medo e frustração. A
literatura da época reflete essa atmosfera sombria (Chandra, 1995).
Também notamos que durante toda a sua vida ele estava muito preocupado com
questões de justiça. Por exemplo, ele era muito tocado pelos conflitos armados de seu tempo e
se envolveu para tentar denunciar as injustiças, entre outras coisas, através de seu trabalho como
escritor e através de reportagens jornalísticas. Finalmente, notamos que ele gostava da meditação e dos retiros em diferentes centros religiosos e espirituais. Dessa forma, ele explorou
diferentes religiões sem, entretanto, seguir nenhum dogma.

1.2 A Obra de Camus
Três ideias fortes dominam o trabalho de Camus: o absurdo da condição humana, a
inevitabilidade da morte e uma constante busca rebelde pela felicidade (Chandra, 1995).
Também notamos que questões atuais estão na origem de todos seus livros. De fato, seu trabalho
é caracterizado pelo fato de que todas essas criações literárias lidam com questões importantes
como, por exemplo, suicídio, culpa, inocência, justiça, julgamento, dever …

1.3 O Mito do Sísifo
O Mito de Sísifo foi publicado no começo da Segunda Guerra Mundial. É nesse ensaio
que Camus introduz sua filosofia do absurdo. Sucintamente falando, o ensaio começa com a
declaração de que “só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio. Julgar se a
vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia”
(CAMUS, 1989). O MS procura descrever a sensação indescritível do absurdo em nossas vidas.
Sísifo, por ter desafiado os deuses foi capturado e recebeu sua punição. Por toda a
eternidade ele seria condenado a empurrar uma pedra do sopé de uma montanha até o seu cimo.
Ao finalizar essa subida, a pedra rolaria para baixo e ele teria que começar tudo outra vez,
repetidamente. Nessa repetição sem sentido, vemos a apresentação da figura do herói absurdo,
visto que mesmo reconhecendo a falta de sentido no que se faz, ele continua executando sua
tarefa diária. A condição do absurdo descrita nesse ensaio baseia-se principalmente na ideia de
que uma grande parte da nossa vida se fundamenta na esperança do futuro, quando, de fato esse
amanhã nos aproxima constantemente da morte.

Capítulo 2 – Bhagavad-Gītā
O BG, que pode ser traduzido como “A Canção de Deus”, é um dos textos fundamentais
da filosofia indiana. É um poema filosófico de grande profundidade que trata de questões
teológicas e filosóficas. Devido à sua grande influência, é por vezes chamada de “Bíblia hindu”,
cuja estrutura está organizada em 18 capítulos que contêm 700 versos. Este texto aborda
questões centrais sobre a condição humana, quais sejam: Quem somos nós? Por que sofremos?
Existe uma vida após a morte? Como podemos nos tornar e permanecer felizes?
A narrativa consiste em um diálogo entre Arjuna e Krishna. O guerreiro Arjuna
encontra-se em um dilema moral aparentemente insolúvel e pede ajuda ao seu primo, amigo e cocheiro Krishna, a fim de encontrar uma solução. Arjuna está no campo de batalha de
Kuruksetra na Índia, vivendo uma situação na qual a guerra fratricida é iminente. Por direito, o
trono pertence a Arjuna e seus irmãos, mas devido a ganância de seus primos que se recusaram
a deixar o trono, a guerra se fez necessária. Antes do início da guerra, Arjuna pede a Krishna
que o leve ao meio onde os dois exércitos encontram-se em posição de combate. Ao ver de
ambos os lados seus entes queridos, professores, amigos e tantos outros guerreiros, aos quais
lhes tinham imensa admiração e estima, Arjuna, consciente do massacre que estava prestes a
acontecer, decide renunciar à guerra. Assim, em resposta à angústia apresentada por Arjuna,
Krishna pronuncia o Bhagavad-Gītā para ajudá-lo a emergir do que pode parecer, à primeira
vista, um dilema moral insolúvel.

Capítulo 3 – Interpretação do Mito de Sísifo à luz do Bhagavad-Gītā
A fim de fazermos uma interpretação do Mito de Sísifo considerando alguns conceitos
pertinentes ao BG achamos apropriado fazer uma divisão do mito em cinco partes como se
segue.

3.1 A subida
Ao analisarmos a subida de Sísifo empurrando a pedra até o cimo da montanha,
encontramos a alusão ao esforço, ao trabalho repetitivo, que a inexorável ação do tempo irá por
cabo de todo trabalho realizado. Porém, nessa subida, ele está tão compenetrado na execução
da sua tarefa, tão identificado com a sua pedra que não tem tempo para refletir sobre a descida
que será inevitável uma vez que o objetivo da subida seja cumprido. Inicialmente, podemos
ressaltar a presença de alguns elementos tais como a ação, a execução de seu dever prescrito, o
sofrimento decorrente de todo esforço empreendido na execução de seu dever. Nesse nível, é
possível traçar paralelos interessantes com as dificuldades de Arjuna em participar da guerra
fratricida. O discurso de Krishna para Arjuna também poderia ser endereçado a Sísifo.

3.2 A descida
Uma vez que o cume é atingido e a pedra rola montanha abaixo, Sísifo começa a sua
descida. É nessa descida que ele, não mais imerso no esforço da subida, fica consciente, ou tem
o tempo de refletir sobre sua condição. É nessa hora de consciência da impermanência de seu
trabalho que ele realiza o absurdo. De acordo com Camus é a consciência da impermanência de
seu trabalho que corrói a esperança de ser bem-sucedido, pois qual seria o sucesso atrelado ao
seu trabalho uma vez que tão logo ele realize a tarefa de transportar sua pedra até o alto, logo
se inicia a descida?
Nesse contexto, também encontramos no BG a reflexão sobre impermanência das
coisas, sobre o estado de inconsciência decorrente da ilusão ou maya que aprisiona o homem
na mesma condição de inconsciência vivida por Sísifo no momento de sua subida.

3.3 O absurdo
Um dos paradoxos essenciais que encontramos na filosofia de Camus concerne a sua
noção do absurdo (Aronson, 2017), para ele, a filosofia começa com a questão sobre o sentido
da existência. Nessa perspectiva, qual seria o sentido da existência para Sísifo na sua condição
de condenado a repetir eternamente a mesma tarefa? Assim o paradoxo se configura pelo
absurdo de se buscar respostas para essas questões primordiais e a impossibilidade de se
encontrar essas respostas. Nesse sentido, percebemos uma analogia com o personagem Arjuna
no BG, o qual se encontrava em seu paradoxo existencial sobre qual o sentido, ou qual bem
decorreria da morte de muitos daqueles presentes na guerra. Entretanto, após as instruções de
Krishna, as quais descortinaram-lhe o véu das ilusões, ele, como o guerreiro que era, escolhe
executar seu dever consciente de que nada pode durar e, de fato, não existe vitória final.

3.4 O desapego
Uma vez que Sísifo se torna consciente da sua situação trágica, da constatação de que
não existe verdadeiramente um sucesso final na sua tarefa realizada, como conviver com a sua
realidade? É possível imaginar Sísifo feliz quando ele se desapega da ideia de sucesso final, ou
seja, quando ele se desapega do resultado de suas ações. Analogamente, somente quando Arjuna
desapega-se do sucesso ou do fracasso decorrente de suas ações ele consegue encontrar a paz
de espírito na execução dos seus deveres de guerreiro.

3.5 A felicidade
Encontramos em Sísifo a possibilidade de vivermos com a certeza de um destino
esmagador, sem a resignação que deveria acompanhar esse fato. A resignação seria vista como
uma tendência à inação. É fato que todos nós iremos morrer, mas essa realidade não nos priva
de agirmos cotidianamente executando as tarefas que precisam ser executadas. Talvez, a
aceitação das coisas como elas são, seja um elemento indispensável para sairmos das ilusões,
ou para termos os momentos de consciência tal qual Sísifo na sua descida, e, exatamente nesses
momentos de lucidez, por mais trágico que possa parecer, é quando nos apropriamos da nossa
condição humana na qual cada perspectiva do que vivemos vai constituindo nosso mundo.
Diante dessa possibilidade de se pensar a felicidade a despeito do absurdo e do trágico que
permeiam a vida, investigaremos que tipo de felicidade é essa de acordo com os tipos de
felicidade descritos no BG.

5. Referências
ARONSON, Ronald. “Albert Camus”. In The Stanford Encyclopedia of Philosophy,
organizado por Edward N. Zalta. Metaphysics Research Lab, Stanford University, 2017.
https://plato.stanford.edu/archives/sum2017/entries/camus/.
BAISHANSKI, Jacqueline. L’orient dans la pensée du jeune Camus: L’étranger, un nouvel
évangile. Vol. 56. Lettres Modernes Minard, 2002.
BHAWUK, Dharm. Spirituality and Indian Psychology: Lessons from the Bhagavad-Gītā.
International and Cultural Psychology. New York: Springer, 2011.
BOVE, Laurent. Albert Camus, de la Transfiguration: Pour Une Expérimentation. Paris:
Publications de la Sorbonne, 2014.
BRUNEL, Pierre, e Aeneas BASTIAN. Sisyphe : Figures & Mythes. Monaco: Editions du
Rocher, 2004.
CAMUS, Albert. Caligula. Paris: GALLIMARD, 1993.
———. Le mythe de Sisyphe. Editions Gallimard, 2016.
———. O Mito de Sísifo. Tradução e Apresentação de Mauro Gama, Editora Guanabara,
1989.
———. L’étranger. Ernst Klett Sprachen, 2005.
———. L’homme révolté. Editions Gallimard, 2016.
CAMUS, Albert, e Raymond GAY-CROSIER. Carnets I, II, III: Mai 1935 – décembre 1959.
Place of publication not identified: Folio, 2013.
CHANDRA, Sharad. Albert Camus et l’Inde. Paris: BALLAND, 1995.
CROCHET, Monique. Les mythes dans l’oeuvre de Camus. Édition universitaires, 1973.
SILVESTRE, Ricardo Sousa, e Ithamar THEODOR (Organizadores). Filosofia e Teologia da
Bhagavad-Gítã. Hinduísmo e Vaishnavismo de Caitanya. Edição: 1a
. Juruá, 2015.
GASSIN, Jean. L’univers symbolique d’Albert Camus. Vol. 6. Librairie Minard, 1981.
GRENIER, Jean. Albert Camus: Souvenirs. Editions Gallimard, 1968.
6
HERBERT, Jean. Réflexions sur la Bhagavad-Gîtâ. Nouv. éd.. Spiritualités vivantes ; 127.
Paris: Albin Michel, 1994.
KING, Adele, org. Camus’s L’Etranger: Fifty Years On. 1st ed. 1992 édition. Place of
publication not identified: Palgrave Macmillan, 1992.
LAKOFF, George, e Mark JOHNSON. Les métaphores dans la vie quotidienne. Paris:
Editions de Minuit, 1986.
NADKARNI, M. V. Bhagavad-Gītā for the Modern Reader: History, Interpretations and
Philosophy. London: Routledge, Taylor & Francis Group, 2017.
NGUYEN-VAN-HUY, Pierre. La Metaphysique du bonheur chez Albert Camus.-Neuchatel:
La Baconniere (1962). XVII, 248 S. 8°. Langages, 1962.
SWAMI, A. C. Bhaktivedanta. Bhagavad-Gītā. New edition édition. Los Angeles:
Bhaktivedanta Book Trust, 2001.
THEODOR, Ithamar. Exploring the Bhagavad-Gītā: Philosophy, Structure and Meaning.
Farnham, Surrey, England ; Burlington, VT: Routledge, 2010.

 Ana Luisa Barbosa de Melo


 

Desvelando os desejos sexuais de personagens trans: a configuração do desejo da travesti Amara Moira e do trans-masculino João W. Nery

Aluna: Ana Luisa Barbosa de Melo

 

Resumo para o seminário discente

 

A presente pesquisa terá como corpus de análise duas obras literárias intituladas de: Se eu fosse puta, da autora travesti Amara Moira, bem como a obra Viagem Solitária: Memórias de um transexual trinta anos depois, escrita pelo transexual masculino João W. Nery. Estas obras tratam-se de autobiografias sobre as vivências dos personagens, cujos gênero e sexualidade fogem da regra imposta pelos modelos heteronormativos.

De acordo com Bento (2008) a heterossexualidade é percebida como um regime de poder, uma vez que cada corpo recém-nascido é inscrito em constantes operações de repetição e de recitação dos códigos investidos como naturais. Sendo assim, o corpo sexuado e a suposta ideia de complementaridade natural ganha inteligibilidade por meio da heterossexualidade. Percebemos assim que a heterossexualidade é percebida como uma verdade absoluta, uma vez que suas práticas e discursos pautados no modelo heterossexual são percebidos de maneira naturalizada.

Desta forma, nossa pesquisa pretende analisar dois personagens que não condizem com modelos heteronormativos, sendo estes subversivos as normas de gênero e de sexualidade, por meio da análise do comportamento das práticas sexuais vivenciadas pelos personagens João W. Nery e Amara Moira.

O objetivo geral da presente pesquisa consiste em analisar a seguinte hipótese: tendo em vista as mudanças realizadas no corpo da travesti Amara Moira e no corpo do transhomem João W. Nery, tais sujeitos ainda permanecem como indivíduos masculinos e femininos de acordo com seu sexo biológico. Para tanto, responderemos os seguintes questionamentos: Para que serve a genitália sexual dos personagens na execução do ato sexual? De que forma estes personagens utilizam partes do seu corpo a fim de substituir seu órgão sexual? Existe orgasmo na relação sexual de sujeitos travestis e transexuais? Sendo assim, deveremos considerar questões que envolvem o processo da construção do desejo destes personagens, atentando-se para o fato da existência da padronização destes desejos por meio dos moldes heterossexuais.  

 

A heterossexualização do desejo requer e institui a produção de oposições discriminadas e assimétricas entre “feminino” e “ masculino”, em que estes são compreendidos como atributos expressivos de “macho” e de “fêmea”. A matriz cultural por meio da qual por meio da qual a identidade de gênero se torna inteligível exige que certos tipos de “identidade” não possam existir-isto é, aqueles em que o gênero não decorre do “sexo” nem do “gênero”. (Butler, 2016, p.44)

 

Neste sentido, iremos buscar compreender se essa matriz cultural realmente irá influenciar na sexualidade do transexual masculino e da travesti, transcendendo a questão dos binarismos impostos pelos modelos normatizados pelo modelo sexual heteronormativo: macho x fêmea, entretanto é importante salientarmos que “ os corpos pensados fora do binarismo biológico sempre retornam a base primeira: porque essas discussões não pendem para matéria em que se realizam os sujeitos, mas para o desejo” (Silva, 2014, p.157). Neste sentido, percebemos que por mais que existam distintas performances sexuais nenhuma delas conseguiu de fato abstrair a forma biológica e binária do sujeito homem ou mulher, com pênis ou vagina.

Na nossa presente pesquisa utilizaremos o arcabouço teórico sobre a construção do gênero a partir de uma perspectiva queer, sendo assim, utilizaremos Butler (2016) a fim de compreendermos a construção do gênero dos sujeitos transexuais e travestis, sendo estes os personagens escolhidos na referida análise. A maioria das teorias feministas entende o sexo como substância, como aquilo que é idêntico a si mesmo, e o gênero enquanto “atributo” de pessoa. Entrementes, Butler (idem) defende que o gênero configuraria um fenômeno inconstante e contextual, não podendo denotar um ser substantivo, mas ser “um ponto relativo de convergência entre conjuntos específicos de relações, cultural e historicamente convergentes” (BUTLER, 2016, p. 29).

Neste sentido, percebemos que Butler percebe o gênero como algo que está fora das construções binárias (macho x fêmea), desnaturalizando assim a interpretação dos gêneros por meio de uma premissa cultural que nos impõem modelos pré-estabelecidos de sermos homens e mulheres em um determinado corpus social. Entretanto, nossa pesquisa pretende desconstruir tal arcabouço teórico, refletindo sobre o fato de não conseguirmos fugir das construções de gênero embasadas na dicotomia (macho x fêmea).

De acordo com Silva (2014) o sexo encontrado, com o qual nascemos, não passa de dois: ou Pênis, ou vagina, ou seja, por mais que tentemos fugir dessa dualidade, na-para construção dos corpos, os sujeitos tenderão a subjetivar-se como homens ou mulheres, o personagem João W. Nery subjetiva-se como um sujeito pertencente ao sexo masculino, mesmo tendo nascido com uma vagina, enquanto que Amara Moira subjetiva-se como um sujeito pertencente ao sexo feminino, mesmo tendo nascido com um pênis.

Entretanto, nas relações sexuais, na presente pesquisa pretendemos demonstrar que os personagens selecionados (Amara Moira e João W. Nery) ao praticarem o ato sexual comportam-se de acordo com o seu sexo biológico, mesmo que para isso os mesmos tenham que utilizar recursos diferenciados para-na substituição de suas genitálias a fim de proporcionarem prazer para seus companheiros, nem sempre atingindo sua própria satisfação sexual. Além da questão do gênero, analisaremos teoricamente características importantes que dizem respeito ao transexual e ao travesti.

De acordo com Butler (2016) as expressões transexualidade, travestilidade, transgênero são expressões identitárias que revelam divergências com as normas de gênero, tendo em vista que estão fundadas no dimorfismo, na heterossexualidade e nas idealizações. Neste sentido, as normas de gênero serão definidas a partir do que é considerado como “real”, delimitando assim o campo no qual se pode conferir humanidade aos corpos.  De acordo com Bento (2008) a transexualidade é percebida como uma experiência identitária, caracterizada pelo conflito existente com as normas de gênero, sendo esta uma característica comum ao comportamento do travesti.  

 

O travesti erotizou o mundo. Não só as pessoas se livraram de suas inibições como também podiam experimentar, hipoteticamente pelo menos, um novo corpo e seus prazeres. A troca de roupa era também uma troca de desejos. O resultado era uma fuga do ‘natural’ – de tudo o que fosse culturalmente preordenado – para novos domínios da desordem voluptuosa (CASTLE, 1999, p. 201).

Tendo em vista que as narrativas das obras selecionadas se tratam de autobiografias, analisaremos a construção das subjetividades destas personagens por meio da compreensão das escritas de si. Os estudos latino americanos frente as escritas de si, se preocuparam com essa questão de perceber o conceito de autoficção, com os estudos de Diana Klinger (2007), tal autora afirma que:

 

Nosso objetivo é articular a escrita com uma noção contemporânea da subjetividade, isto é, um sujeito não essencial, incompleto e suscetível de autocriação, a autoficção tal qual a definiremos aqui surge em sintonia com o narcisismo da sociedade midiática contemporânea, mas, ao mesmo tempo, produz uma reflexão crítica sobre ele. (KLINGER,2007)  

 

Notamos por meio do trecho acima citado que a escrita autoficcional é um produto da era pós-moderna, na qual os sujeitos escritores estão perpassados por um cenário cultural cheio de ambiguidades, fragmentação, incertezas e inseguranças, desta forma o sujeito é impelido em contar toda a “verdade” devido essas limitações que envolvem o seu processo criativo cheio de incertezas sobre os fatos que foram vivenciados dentro do processo da escrita. Desta forma, a autoficção seria um tipo de autobiografia dos tempos pós-modernos, sendo assim analisaremos as personagens em questão tomando por base suas representações auto ficcionais.

 

Referências bibliográficas

 

BENTO, Berenice. O que é Transexualidade. 1 ed. São Paulo: brasiliense, 2008.

_______, Berenice. A reinvenção do Corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2016.

CASTLE, T. A cultura do Travesti: sexualidade e baile de máscaras na Inglaterra do século XVIII. In: Rousseau G. S. et al (orgs.). Submundos do sexo no Iluminismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro. O retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.

SILVA, Antônio de Pádua Dias da et al. Interfaces: Gênero, discurso, linguagens. São Paulo: Scortecci, 2014.315p.

 Anna Paula Aires de Souza


ESTRATÉGIAS DE REFERENCIALIDADE E ESPETACULARIZAÇÃO EM RICARDO LISIAS, JACQUES FUX, MARIO BELLATIN E DANIEL LINK

Anna Paula Aires de Souza – paulaaires1@gmail.com – Mestrado

Orientador: Prof. Dr. Wanderlan da Silva Alves

 

A pesquisa que ora apresentamos pauta-se num corpus de análise constituído por quatro narrativas da literatura contemporânea latino-americana que evidenciam a presença de artifícios – as escritas de si, o apagamento das fronteiras entre ficção versus realidade e/ou entre os próprios gêneros escriturais, a espetacularização posta na figura do autor, a fluidez e/ou indefinição das formas literárias, etc. – que, apesar de não serem necessariamente recentes no universo literário, se intensificam e se ressignificam na literatura recente.  Para tanto, nosso corpus de pesquisa está constituído de La ansiedade: uma novela trash (2004), do argentino Daniel Link, Shiki Nagaoka: una nariz de ficción (2005), do mexicano Mario Bellatin, Divórcio (2013), do brasileiro Ricardo Lísias e Meshugá: um romance sobre a loucura (2016), do brasileiro Jacques Fux.

La ansiedad é uma narrativa construída a partir da relação entre Manuel Spitz e Michel Gabineau. Há no decorrer do romance um predomínio do virtual que se estabelece na construção narrativa pelo uso de e-mails, conversas em chats e intervenções de textos teóricos (que aparecem retirados de seu contexto original e inseridos em e-mails). Desse modo, o próprio formato do livro aponta para aspectos experimentais, na medida em que inova em sua forma de narrar – devemos considerar que sua publicação ocorreu em 2004, momento em que estavam emergindo as primeiras redes sociais e o próprio uso da internet estava se popularizando, na América Latina. Na capa do livro, um homem nu em pixels aparece exposta, já em diálogo com o relato desenvolvido na narrativa, inscrito nos chats eróticos. Essa exposição sinaliza para vários aspectos: a tecnologia presente na forma de narrar, a ambiguidade das referências identitárias nas relações virtuais no relato, como por exemplo a constante mudança de nickname do principal personagem, etc. No dossiê de imprensa que funciona como um prefácio à edição, em que o primeiro questionamento respondido ao autor, sobre se La ansiedade é o romance é de um crítico e quais as relações que se estabelecem entre crítica e ficção. A resposta de Link, por sua vez, nos faz refletir acerca das relações entre autor/crítico presentes nos processos diegéticos contemporâneos presentes na narrativa. Figueiredo (2015), ao citar Bakhtin, afirma que é cada vez mais comum o autor se pronunciar e comentar suas próprias narrativas em nosso mundo midiatizado, todavia ressalva que ele – o autor – não é o detentor de todos os sentidos presentes em sua produção narrativa. Contudo, essas aparições cada vez mais constantes do autor apontam para um traço típico nas literaturas contemporâneas: o retorno do autor que se afirma por meio da proliferação das escritas de si. “Barthes postula que uma pesquisa sobre o sujeito pode passar por várias fases e acaba por concluir que finalmente o sujeito volta, não como ilusão, mas como ficção, o que aproxima mais da concepção do sujeito da autoficção contemporânea” (FIGUEIREDO, 2015, p. 62).

No caso de Shiki Nagaoka: una nariz de ficción, Bellatin ficcionaliza para inventar a vida de seu suposto autor favorito. Shiki Nagaoka, personagem principal, tem como característica marcante o nariz cujo tamanho é descomunal. Esse nariz movimenta o enredo, pois está interligado à sua expulsão de casa, a sua vida num convento, as suas relações amorosas e também ao seu interesse pela fotografia e pela literatura. Não deixa de apontar, também, para a relação oblíqua de Bellatin com a deficiência física e seus vínculos com sua prática como escritor. Segundo o narrador, Shiki Nagaoka tornou-se referência no que diz respeito à fotografia para autores como Arguedas e Rulfo e para estudiosos que buscam entender a capacidade narrativa da fotografia evidenciada pelo misterioso escritor. Todavia, as fotografias presentes em Shiki Nagaoka não funcionam como material documental, e sim como artifício artístico, problematizando a função testemunhal da fotografia. Mario Bellatin usa a criação de sua personagem para trabalhar com sua própria dinâmica narrativa experimental. “Aparentemente foto e palavra marcou profundamente gerações de artistas, que viram na proposta de Shiki Nagaoka um novo método narrativo […] Seria então possível pensar que a fotografia narrativa proposta pelo personagem de ficção de Bellatin é uma dessas passagens da literatura que a Escola Dinâmica de Escritores busca impulsionar”. (BRIZUELA, 2014, p. 24). Logo, Shiki Nagaoka constitui-se como uma narrativa pseudobiográfica que pode ser entendida “como busca através da fotografia e também de outros meios, de outro modo de escrita” (BRIZUELA, 2014, p.16).

Em Divórcio, por sua vez, Lísias brinca a todo o momento com o jogo ficção versus realidade. Narrado em primeira pessoa e com um narrador cujo nome coincide com o do autor, o romance baseia-se no jogo de referências ao seu divórcio e a um suposto diário de sua esposa, cuja descoberta é o motivo da separação. “Casei com um homem que não viveu. O Ricardo ficou trancado dentro de um quarto lendo a vida toda” (LÍSIAS, 2013, p.15). Para tanto, além da quebra do pacto ficcional – estabelecido com os leitores em escritas autobiográficas ou ficcionais – o autor expande sua narrativa para as redes sociais pessoais, para as entrevistas que concede propiciando ao leitor uma nova experiência literária em consonância com o que é exterior ao livro como objeto estético. Esses textos “exteriores” lançados pelo autor antes e depois da publicação do livro, “fazem parte de forma integral não só do alcance e do tom da fruição/leitura, mas da forma da própria construção do livro enquanto obra ou, ainda mais, em relação ao estatuto ficcional dos trechos do diário encontrados no livro” (VIEIRA, 2017, p.188).

Já em Meshugá o narrador recria biografias de personagens famosos mundialmente e de origem judia, intercalados com inconcebíveis justificativas para a suposta loucura judaica. Através da narração da “biografia” dessas personagens ele faz referência a si próprio, incursionando no universo da autoficção e da autorreferência, visto que sua origem judaica e também a dificuldade de escrever sobre esse trauma emergem no seu relato. Por sua vez, ainda que se intitule um romance sobre a loucura, configura-se por meio de uma classificação porosa que foge do que é reconhecido como sendo a forma literária do romance. Considerando que seus elementos constitutivos, apesar de tratarem de um tema geral que é a loucura judaica, utilizam-se de personagens, histórias que se articulam como um “mosaico de histórias” (GARRAMUÑO, 2014), a narrativa dá voz a várias personagens da cultura judaica, por meio de um narrador também judeu.

Dessa forma, dada a profusão de textos que são vinculados, nessas narrativas, e à própria figura dos autores, torna-se restrito lê-los apenas como reflexos do produto acabado que é o livro. Dessa forma, seria interessante pensar as textualidades que constituem tais narrativas como um campo expandido do relato contemporâneo, que não se restringe aos elementos mais imediatamente postos no plano diegético, mas estão dispersos também como elementos que se integram à própria corporalidade da obra – como, por exemplo, blogs, entrevistas, fotografias, chats, e-mails, etc.

Para tanto, nos questionamos acerca da espetacularização, da autoexposição e da autorreferência como elementos e recursos escriturais que promovem o espessamento narrativo dos textos em questão. Dessa forma, nossa intenção é mapear, por meio das quatro narrativas em questão, práticas literárias comuns na Literatura contemporânea latino-americana que problematizam as fronteiras entre ficção versus realidade e das formas do próprio gênero narrativo e a espetacularização da figura do autor.

Nosso objetivo geral é analisar como as questões de referência, autorreferência, auto exposição e espetacularização atuam como via para uma reflexão acerca da construção da própria literatura no presente, no que diz respeito às narrativas que são o corpus de nossa análise, e do modo como a interposição dos diversos meios de comunicação vão não só interferindo nos processos de criação literária como também determinam e/ou problematizam os meios como a literatura vem sendo feita em nossa época.

Sendo assim, buscamos organizar nossa pesquisa em três capítulos. No primeiro capítulo serão discutidos aspectos acerca das noções de referencialidade, autorreferencialidade e seus desdobramentos dentro das narrativas. Dialogamos então com autores como Brizuela (2014), Figueiredo (2015), Klinger (2006), entre outros, que nos fazem refletir acerca da figura do autor e pensar nas possibilidades referenciais dentro das narrativas e seus consequentes usos contemporâneos. Logo, no decorrer de nossas leituras tanto teóricas como as próprias leituras literárias, podemos constatar alguns tipos de referência presentes e importantes na construção narrativa dos textos, tais como referências paródicas, que apontam para fora do texto – tanto como intertextualidade com outros textos, quanto de modo a estender a própria narrativa para fora do livro –, autorreferências, entre outras. Essas questões referenciais aparecem, por sua vez, atreladas à necessidade de espetacularizar e/ou evidenciar a figura do autor, para pôr em dúvida o pacto de ficção versus realidade estabelecido nas escritas de si (autobiográficas ou autoficcionais) e resignificar outros textos que estão como sobrepostos, nas narrativas. A autorreferência, por sua vez, é um traço frequente nas literaturas contemporâneas, apesar de ser um recurso que não é novo no campo literário. Logo, a autorreferencialidade se põe em um lugar de limites entre o que é considerado ou não literatura, o que Ludmer (2010) afirma ser o “atravessar fronteiras”, isto é, estar simultaneamente dentro e fora do que se entende por literário. A autora evidencia que a literatura contemporânea ultrapassa as fronteiras do livro como objeto físico, além de superar categorias de classificação literária que não mais conseguem abarcar essas novas noções. Para tanto, a autorreferencialidade aparece como um desses procedimentos fronteiriços frequentes na literatura contemporânea.

No segundo capítulo temos por intuito discutir os processos de espetacularização da figura do autor, considerando que no capítulo anterior as noções referenciais já apontam para esse aspecto que se sobressai dentro do corpus analisado. O espetáculo aparece, portanto, como um aspecto paradoxalmente positivo, ao menos na perspectiva que perpassa a opinião pública e a da própria figura de escritor. Dessa forma, o espetáculo liga-se ao desejo do autor de autoevidenciar-se, como que fazendo uma teatralização de sua própria imagem. Assim, as noções norteadoras do espetáculo apareceriam hipoteticamente como crítica potencializada (e nem sempre consciente) dos limites para a subjetividade decorrente da aproximação com as mídias sociais – formando, também, um campo literário que se expande para fora dos limites do livro – e como aquilo que se oferece aos olhos dos demais como uma representação.

Ainda no que diz respeito aos livros e consequentemente seus autores, as referências também se manifestam na espetacularização da vida e da imagem dos autores, o que é uma característica do contemporâneo. Dessa forma, para Laddaga (2007), alguns autores que compõem o cenário da literatura contemporânea como, por exemplo, é o caso de Bellatin, trabalham com seus escritos utilizando-se de recursos performáticos. Para tanto, além de criarem “espetáculos de realidade”, esses autores se colocam como figuras também centrais em suas obras (MELO, 2015). Dessa maneira, o emprego de referências que façam menção a si próprio (o autor) podem ser lidas como sintomas de um processo mais amplo de espetacularização (SCHOLHAMMER, 2011).

Por fim, no terceiro capítulo discutiremos o conceito de campo expandido a partir das relações estabelecidas nos capítulos anteriores, pretendendo analisar como os elementos tanto internos como extratextuais se integram possibilitando o processo de expansão do campo literário das narrativas estudadas. Dessa forma, entendemos como campo expandido uma literatura que incorpora em sua linguagem – relacionada a outros tipos de discurso – a ideia de instabilidade constitutiva, por meio da incorporação de blogs, e-mails, relatos autobiográficos, fotografias, entre outros dentro do campo literário. (GARRAMUÑO, 2009; KRAUSS, 2008). Destacamos que o caráter expandido adquire proporções porosas na literatura contemporânea que, por sua vez, dispersam-se para além das páginas do próprio livro, tornando-se objetos de arte inespecíficos. Essa inespecificidade provocada pelo espessamento de limites entre o literário e o que dialoga com ele é concebida nas narrativas objetos de nosso estudo a partir de aspectos que serão tratados nos capítulos anteriores, tais como: as noções de referência, a espetacularização do autor, a hibridização de fronteiras, etc.

 

REFERÊNCIAS

BELLATIN, M. Shiki Nagaoka: una nariz de ficción. In: BELLATIN, M.  Obra Reunida. México: Alfaguara, 2005.

BRIZUELA, N. Depois da fotografia: uma literatura fora de si. São Paulo: Rocco, 2014.

FIGUEIREDO, E. Em torno de Roland Barthes: da “morte do autor” ao nascimento do leitor e a volta do autor. Santa Maria: PPGL, 2015.

FUX, J. Meshugá: um romance sobre a loucura. Rio de Janeiro: José Olympio, 2016.

GARRAMUÑO, F. Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Trad. Carlos Nogué. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.

____________. La literatura en un campo expandido: y la indisciplina del comparatismo. Cadernos de Estudos Culturais, Campo Grande, v.1, p.101-111, jul./dez.2009.

KLINGER, D.I. Escritas de si e escritas do outro. Auto-ficção e etnografia na literatura latino-americana contemporânea. 2006.205f. Tese (Doutorado em Letras)- Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.

KRAUSS, R. A escultura no campo ampliado. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, n.17, p.128-137, 2008.

LADDAGA, R. Espectáculos de realidad: ensayo sobre la narrativa latinoamericana de las últimas dos décadas. Rosario: Beatriz Viterbo, 2007.

LINK, D. La ansiedade: novela trash. Buenos Aires: El cuenco de plata, 2004.

LÍSIAS, R. Divórcio. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.

LUDMER, Josefina. Las Literaturas pós-autônomas. Sopro, Desterro, v. 20, p.1-4, jan. 2010. Disponível em: <http://www.culturaebarbarie.org/sopro/n20.pdf>. Acesso em: 25 ago. 2018.

MELO, A. M. O narrador e o giro caleidoscópio da galeria da flores de Mario Bellatin. 2015. 105f. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários)- Universidade do Estado do Mato Grosso, Tangará da Serra, 2015.

SCHOLLHAMMER, K. E. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

VIEIRA, W. Pacto com o diabo: Divórcio, de Ricardo Lísias, como manual para compreender a autoficção contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 51, p. 182-204, mai./ago. 2017. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/2316-4018519>. Acesso em: 25 ago. 2018.

Ana Paula dos Santos Claudino de Macena 


SUBVERSÃO DA ESTÉTICA BARROCA E MARGINALIZAÇÃO CRIOLLA DA CIDADE LETRADA: O PERUANO JUAN DEL VALLE Y CAVIEDES E O BRASILEIRO GREGÓRIO DE MATOS

 

Ana Paula dos Santos Claudino de Macena (Mestranda /UEPB/PPGLI)

Profª Drª Rosilda Alves Bezerra (Orientadora / UEPB /PPGLI)

 

RESUMO

 

O Barroco, trazido pelos intelectuais da península para a América Latina, já se caracterizava como um movimento estético-literário menor pelos classicistas e, ao ser transplantado, também se subcategoriza valorativamente, entre uma Europa originadora e a colônia criolla de insuficiente erudição. Contudo, discorreremos que essa transplantação oferecerá outro matiz ao movimento que, adotado pelos escritores americanos, naturalmente se distinguirá e se distanciará das origens, consequentemente ocupando uma zona marginal por destoar do cânone vigente. Logo, visamos recortar e caracterizar como se desenvolveu o Barroco das Américas e em como a cidade letrada – mais uma das instancias do poderio colonizador – durante séculos tentou amuralhar e manter fora desses muros escritores e intelectuais criollos de notória erudição e apropriação da arte escriturária. Para tanto foram tomados como base exemplificadora os poetas Gregório de Matos, da colônia portuguesa, e Juan Del Valle y Caviedes, da colônia espanhola no vice-reino do Peru, figuras altamente representativas desse contexto.

PALAVRAS-CHAVE: Barroco, Criollo, Cidade Letrada, Subversão, Marginalização.

 

INTRODUÇÃO – Parte dos estudos relacionados à estética barroca apresenta pouca precisão em relação aos dados e informações que os compõem. Essa peculiaridade os investigadores atribuem às precárias condições de registro escrito dessa época ao que se podem agregar outros fatores sociais que cerceavam e selecionavam essas produções de acordo com os seus parâmetros. Como exemplos de conservadores da ortodoxia da palavra escrita, podemos citar a figura da Igreja que estabelecia e impunha seus padrões religiosos e morais, as autoridades locais que precisavam manter a ordem e os bons costumes e também a cidade letrada (RAMA, 2010; MAZÍN 2008; ROSE, 2008), grupo seleto e estabelecido de intelectuais que detinham não apenas o domínio do saber, mas também a autorização para exercer a escritura como prática intelectual. (RAMA, 2010). Atendo-se a essas estruturas sociais, que acrisolavam o exercício intelectual nas cidades da América do século XVII e que, ao reclamar esse posto regulador, acabavam relegando aos intelectuais latino-americanos uma zona marginal dentro desse círculo erudito que constituíam, aqui serão tomados como base referencial de análise os seguintes poetas criollos: o peruano Juan Del Valle y Caviedes e o brasileiro Gregório de Matos. Esses, de notória erudição, desenvolveram vasta obra de cunho literário, atendendo às regras impostas e vigentes que, sem elas, um membro da sociedade não poderia ser caracterizado como intelectual. Essa escolha parte do fato de que, apesar de serem frutos de distintas colônias e colonizadores, ainda assim apresentam peculiaridades comuns à figura do erudito criollo de seu tempo. Ou seja, dentro de suas diferenças, será justamente encontrado o ponto de contato que os caracterizará como figuras marginais que, de maneira intencional ou não, acabaram por subverter o gênero literário Barroco, corrente na época em que viveram.

 

JUSTIFICATIVA – A análise da produção de poetas como Gregório de Matos e Juan Del Valle y Caviedes, significaria a possibilidade de mais uma revisão de suas obras, contextos sociais e condições de produção, com vistas a corroborar a necessidade de, como coloca Zanetti (1996), desconstruir visões alicerçadas na perspectiva atual que insistem em colocar esses poetas num lugar menor. Esses, quase sempre quando citados, o são apenas por seu caráter primitivista, objetivos etnográficos ou mesmo folclóricos. Todavia, a ampliação das discussões de críticos, historiadores e sociólogos da contemporaneidade converte em pensamento mister a reconsideração e recuperação desses estudos, permitindo articular de forma diferente o passado social, cultural e literário, sem apenas submetê-lo a simples sucessão de das correntes literárias europeias, como nos faz lembrar Zanetti (1996). Ou seja, essa necessidade de revisitação, possivelmente nos ajudará a colaborar a compor respostas a questionamentos sobre a validação de um barroco latino-americano e sua identidade nacional, tomando como base exemplificadora dois poetas/intelectuais que lograram o intento de pintar, denunciar e burlar as leis cerceadoras de uma cidade letrada que sequestrava o idioma e o distanciava das pessoas comuns. Essa opção, entretanto, legou às suas obras um lugar de enclausuramento e solidão, como aponta Paz (2013), mas que, ao prescindirem do auditório da sua época, podemos afirmar com segurança, conseguiram algo mais além de seu tempo: alcançaram uma comunicação que é mais alta, a da posteridade.

 

REFERENCIAL TEÓRICO – Para conceituar e caracterizar os primeiros grupos de intelectuais que lograram se organizar e consolidar durante o último terço do século XVI (RAMA, p. 36), foi tomado como base o termo cunhado e problematizado por Ángel Rama: a cidade letrada. Essa cidade, além de representar uma elite escriturária erudita, representou também mais um espaço de imposição do colonizador europeu na América, ou seja, o espaço dos signos. E este lugar, ao instituir-se, legitimava também a autoridade desses servidores intelectuais que manejavam a pluma, como define Rama, em um claro intento de controle, que, ao quitar do nativo o poder da palavra, o mantinha em uma esfera de submissão, de assujeitamento social. Consoante com essa perspectiva, Óscar Mazín (2008), faz uso de um termo equivalente – gente de saber –, para também caracterizar esses doutos barrocos das colônias. E essas duas terminologias, de Rama e de Mazín, para mais além de unicamente definir um círculo restrito de doutos, traça um perfil contextualizador da sociedade que o abriga, convertendo-se de suma importância para a composição dessa investigação. Atendo-se ao contexto mais específico da colônia americana lusa, Melo e Souza (2008, 2009) igualmente trata da questão apontando o término letrados lusobrasileiros, inclusive, como o mais adequado, baseando-se na concepção moderna do termo (ALTAMIRANO, 2008). A autora traça também as principais diferenças e matizes do barroco brasileiro ao estabelecer-se, permitindo o vislumbre de duas estéticas dentro de uma mesma. Em um plano mais relacionado com a cosmovisão do intelectual criollo – no tocante à vida na colônia, restrições, relações, papéis e atuação social – Foram considerados aportes de teóricos como os de Yvancos e Sanchéz (2000), que teoriza questões do cânone espanhol no contexto americano, Bosi (1992) e Coutinho (1997,1983) para problematizar os processos e percursos da literatura barroca brasileira e do autor Gregório de Matos, também Zanetti (1993), que insiste na necessidade de revisão das produções criollas, entre outros autores, que discorrem sobre a oclusão intelectual imposta pelos conquistadores europeus, as barreiras fixadas e os preconceitos dos quais esses intelectuais precisaram enfrentar para alcançarem um tipo de legitimação para suas obras e com isso obterem a graça de vê-las publicadas. Essa discussão será ainda corroborada com os estudos de Jacques Lafaye (2004) y Quijano (2000) que tratam sobre a questão dos processos de marginalização e eurocentrismo na América Latina, passando também por algumas discussões desde uma perspectiva mais contemporânea. Há ainda aportes de Walter Mignolo, que problematiza questões como as diferenças entre colonização e colonialidade, por exemplo. Por fim, como base contextualizadora, foram tomados escritos de Reedy (1984), biógrafo de Juan Del Valle y Caviedes, e também artigos científicos relacionados, em especial o de Zafferano (2010) e Sánchez (1940), versando sobre a marginalidade de sua poesia. Já para analisar as circunstâncias sociais de Gregório de Matos, foi revisada a obra biográfica do autor realizada por Peres (2000), Ana Miranda (2014), Hansen (2010) e Afrânio Coutinho (1983,1997).

 

METODOLOGIA – Será realizada, primeiramente, uma revisão dos estudos já realizados que versem sobre a temática abordada, sempre objetivando reunir, analisar e unir os dados elencados de acordo com nossos objetivos. Em seguida propor uma caracterização contextual da manifestação do barroco colonial peruano e brasileiro. Sequencialmente, recortar a cidade/sociedade letrada e as instâncias sociais restritivas das práticas de escritura e, consequentemente, as possíveis causas da marginalização de Juan Del Valle y Caviedes e Gregório de Matos. Por fim, seria posta em evidência a relevância do trabalho intelectual desses poetas ratificando a importância da análise, estudos e revisão temática relacionada a esse período estético-literário e seus poetas produtores. Isso salientando a imprescindibilidade da desconstrução e combate das, ainda presentes, concepções que põem a um lado o espírito ideológico do homem dessa época e, sob as luzes da nossa contemporaneidade, analisam de maneira diminuidora, limitante e mesmo pejorativa esses letrados, contribuindo assim, de maneira consciente ou não, com a continuidade da marginalização a eles infligida.

 

CONCLUSÃO – Logo, revisar essas produções, seria uma possibilidade, entre outras, de revisão de um sedimento teórico inferiorizador que repousa sobre as obras desses poetas. E esse objetivo se norteia pelo fato de grande parte das obras criollas que, ao serem marcadas pelo estigma da inferioridade e menor qualidade, permaneceram durante longo período legadas ao ocultamento quase total. Igualmente, é interessante ressaltar que não será esta a exclusiva causa da omissão dessas figuras do cânone literário de seu tempo, pois, dadas às condições precárias de acesso à informação, distâncias e dificuldades de mobilidade, dispendiosos custos, necessidade de influência e relevância social – fatores essenciais para a impressão e publicação de livros –, dentre outros aspectos, também precisarão ser vistos como relevantes para que os ditos autores fossem considerados inapropriados (HANSEN, 1969). É importante considerar ainda que a literatura, como corrobora Coutinho (1997) e Filho (1998), nasce barroca, pelas mãos barrocas dos jesuítas – no contexto latino-americano – logo, não apresenta abismais diferenças. E isso se deverá, entre outras razões, ao fato de que ainda não se podiam precisar fronteiras sob o conceito definido pela atualidade e, principalmente, por esta estética ser corrente tanto em Portugal como na Espanha, somando-se ainda o fato não desprezível de que Portugal esteve sob o domínio espanhol (1581-1640). Entretanto, ressaltamos que seria bastante equivocado considerar que o Barroco tenha se manifestado de maneira uniforme. Antes de tudo, é preciso considerar que ao transplantar um movimento artístico-literário esse, inexoravelmente, passará a desenvolver e assumir matizes próprios, inclusive, por necessitar ser deglutido, sob o conceito oswaldiano de antropofagia, para que ocorra a apropriação da idiossincrasia estética por parte dos nativos. Octavio Paz corrobora essa ideia ao afirmar que a arte se nutre sempre da linguagem social e que essa linguagem é, sobretudo, uma visão do mundo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALTAMIRANO, Carlos. Historia de los Intelectuales en América Latina. Katz Editores, Buenos Aires, I, p. 53 – 118, 2008.

BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. Companhia das Letras, São Paulo, 1992.

COUTINHO, Afrânio. O Barroco. IN: COUTINHO, Afrânio (org.) A Literatura no Brasil: Era Barroca/ Era Neoclássica. São Paulo: Global Editora, 1997, v. 2, p. 4-41.

HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1969.

LAFAYE, Jacques. A Literatura e a Vida Intelectual na América Colonial. IN: BETHELL, Leslie (org.), América Latina Colonial. v. II. São Paulo: EDUSP, 1998, p.595-635.

MIGNOLO, Walter. La colonialidad a lo largo y a lo ancho: el hemisferio occidental en el horizonte colonial de la modernidad. IN: LANDER, Edgardo (org.), La colonialidad del saber: eurocentrismo e ciencias sociales. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2000, p. 55-85.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo e América Latina. CLACSO, Buenos Aires: Biblioteca Virtual de Ciencias Sociales de America Latina y el Caribe, 2000, p.201- 246. Disponível en: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/lander/quijano.rtf

REEDY, Daniel. “Prólogo”, “I. Semblanza del poeta”, “II. Introducción crítica”,“III. Noticia bibliográfica” In: Obra completa de Juan del Valle y Caviedes, Caracas, Biblioteca Ayacucho, n° 107.

SÁNCHEZ, Luis Alberto. Un Villón Criollo. Revista Iberoamericana, v. II, n° 3, p. 79-86. 1940.

SPINA, Segismundo. Gregório de Matos. IN: COUTINHO, Afrânio (org.) A Literatura no Brasil: Era Barroca/ Era Neoclássica. São Paulo: Global Editora, 1997, v. 2, p. 114-125.

VALLE Y CAVIEDES, Juan del. Obra Completa. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1984.

YVANCOS, José Maria; SÁNCHEZ, Rosa María Arada. Teoría del cánon y literatura española. Madrid: Cátedra, 2000. ISBN 978-84-376-1786-2.

ZAFFERANO, Daniel Sebastián. Juan del Valle y Caviedes y la Ciudad Escrituraria. Posibles Causas de una Marginación. Hologramática, Buenos Aires, v. II, nº 21, p. 175-203.
jun./nov. 2011.

ZANETTI, Susana. Perfiles del Letrado Hispanoamericano del Siglo XVII. In: UNIVERSIDAD DE NAVARRA. Actas del III Congreso de la Asociación Siglo de Oro. Toulouse: Studia Aurea, 1996. I, p. 215 – 224.

 Ayanne Larissa Almeida de Souza 


POR UMA HERMENÊUTICA DA DISCURSIVIDADE: O COMPADRITO E AS POÉTICAS DO TRÁGICO NO TANGO-CANÇÃO (1917-1945)

 

Discente: Ayanne Larissa Almeida de Souza

Orientador: Eli Brandão da Silva

Linha de Pesquisa: Literatura e Hermenêutica

 

1 INTRODUÇÃO

 

No campo da literatura, a problemática em torno do trágico talvez tenha sido a instância que mais esforços demandou por uma definição ao longo dos séculos. A própria palavra tragédia, como salienta Eagleton (2013), pode designar uma obra de arte, um evento da vida real ou uma visão de mundo/estrutura de sentimento. Desde de Aristóteles, a tragédia mostra-se como o campo que mais se aproxima dos sentimentos humanos dos nossos dias, pois em uma época de crises e quebra de valores, de renovação e revolução, há sempre a necessidade humana de se buscar o trágico. Segundo Raymond Williams (2002), nos últimos cento e cinquenta anos fez-se um esforço imenso por tentar sintetizar o que viria a ser o trágico a fim de que esta essência única fosse transmitida como absoluta. Entretanto, sabemos que não há uma essência suprema, pois o trágico, como conceito e por isso mesmo histórico, irá se modificar de acordo com a época e com a sociedade na qual aporte, isso porque as próprias produções literárias renegam sistematizações padronizadas e é perigoso tecer determinadas características e especificá-las como sendo próprias do trágico.

A partir do sentimento trágico, que está arraigado à condição existencial humana, ainda que esta não seja trágica por si mesma, mas pode ser vivenciada de maneira trágica, podemos compreender o fenômeno trágico na modernidade e em que medida pode ser ele vivenciado dentro das narrativas do tango rio-platense. Através da voz do tango, o compadrito, o eu-lírico masculino que diz, e não só isso, possui um tom específico para dizê-lo, buscaremos compreender como o trágico existencial ligado ao fracasso amoroso, o elemento feminino emergindo como elemento trágico, se apresenta ao ethos do cancioneiro e como a tragicidade é construída nas narrativas do tango, observando o ideal de entonação do cancioneiro, acompanhando seu lugar de enunciação, seu código linguístico, seu ethos, como salienta Maingueneau (2006). Analisaremos o caráter e a corporalidade, que é o conjunto dos traços psicológicos e corporais, tais como o tom empregado, as expressões utilizadas, assim como a indumentária, o comportamento, o estereótipo que o interlocutor atribui à imagem do compadrito.

Buscamos compreender a partir do cancioneiro do tango e das estruturas de sentimento de sua época, estas marcas que atravessam uma dada cultura, no caso a argentina, em uma determinada época e espaço geográfico, para apreendermos esse cancioneiro, que não é uma presença plenamente acabada e estática, mas dinâmica e induzida pelo destinatário como fruto de sua interpretação, a fim de identificarmos essas características específicas do ethos tanguero e entendermos que tais caracteres específicos fazem menção aos fundamentos do discurso trágico do tango.

Para fazer-se entender a construção do ethos do cancioneiro do tango, o compadrito e da própria figura feminina, a milonguera, perfazemos, no primeiro capítulo, finalizado, a trajetória histórico-social do tango, desde as suas primeiras efervescências por volta de 1870, até tornar-se o ritmo mais executado do mundo nas décadas de 30, 40 e 50. Salientamos a importância dos imigrantes europeus e dos gauchos dos pampas argentinos, as duas figuras que desembocarão no ethos do compadrito. Apresentamos as relações e os problemas sociais dentre os quais emerge o tango e suas figuras arquetípicas.

No segundo capítulo, também finalizado, dividido em três tópicos, dissertamos sobre a etimologia da palavra tango, problematizando como este fenômeno cultural, que traz sobre si uma dupla carga de mistério, sua denominação e sua origem, passou a ser conhecido popularmente por tango. Analisamos, no segundo tópico, o ethos do cancioneiro do tango, salientando seu lugar paratópico de fala e apresentando a figura da mulher fatal como a embreagem paratópica deste cancioneiro, a fonte do sofrimento e a culpada pela ruína do sistema patriarcal. No terceiro tópico, propusemos uma discussão teórica sobre o conceito de estrutura de sentimento, de Raymond Williams, salientando a impossibilidade de se desvincular o individual do social e vice e versa, apontando que a tragédia e o trágico são convenções e estruturas institucionais de um determinado espaço-tempo e, como tal, em constante processo de transformação. A partir deste pensamento, de uma sociologia da cultura, apontamos a nostalgia, melancolia, a degradação física e moral das figuras do tango, homem e mulher, a autodestruição (pelo álcool e pelo suicídio) e o feminicídio como pontos trágicos dentro do discurso do cancioneiro do tango, uma vez sendo estes pontos uma condição geral das relações sociais do espaço-tempo do qual emerge o tango enquanto fenômeno sociocultural.

Como afirma Gobello (1999), o tango nasceu dentro dos lupanares rio-platenses, no submundo das grandes cidades de Buenos Aires e Montevideo, que receberam ondas imensas de imigrantes europeus que, mesclados aos gauchos que também acorriam aos centros urbanos em busca de melhores condições de vida, formaram uma realidade multicultural, diversificada e conflitante no qual se desenvolveu o ritmo que se transformou em uma expressão das sociedades da bacia do Prata, encontrando sua missão na exaltação do fracasso. Blanchot (1969, p.357 apud SARRAZAC, 2013, p.11) afirma que o sujeito comum, tal como o cancioneiro do tango, vê a vida em tons de cinza e, por isso mesmo, a trivialidade do dia-a-dia fará emergir esse trágico singular na modernidade. O quotidiano, “a trivialidade que retarda e que recai, a vida residual que enche nossas lixeiras e nossos cemitérios, dejetos e detritos”, essa banalidade é também o que há de mais importante, já que ela remete à existência em sua espontaneidade própria e, assim reconhecida, no momento em que é vivida, desfaz-se de toda especulação, talvez de toda a coerência, de toda regularidade.

É o que Sarrazac (2013, p.12) denomina de “drama da vida”, uma mudança profunda que se traduz na amplitude da tragédia, abarcando não mais um dia fatídico, mas toda uma existência, toda a crônica de uma vida, da sua cadência intrínseca constituída de saltos, interrupções, fragmentações, repetições, etc. A própria existência cotidiana do cancioneiro do Tango tornar-se-á o drama da vida, a tragédia, a própria existência em seu desejo de vingança contra o cancioneiro.

Para Raymond Williams (1992), a arte mostra as relações sociais evidentes, portanto, no que diz respeito ao tango, devemos nos perguntar quais fenômenos sociais estão se tornando evidentes através deste fenômeno específico. Para Williams (1992), não se pode separar as relações sociais evidentes das práticas artísticas. Deste modo, os pressupostos fundamentais do tango enquanto literatura, música e espetáculo cênico estão diretamente unidos às questões socioculturais históricas que permitiram que estas mesmas práticas sociais se formalizassem esteticamente em uma ação artística que enquadraríamos dentro do gênero trágico do melodrama.

Ivete Huppets (2000) afirma que o melodrama substituirá o trágico no século XIX, a partir da corrente romântica e será marcado pelo excesso de sentimentalismo, embate entre dois blocos antagônicos: o bem e o mal, o vício e a virtude, cenários lúgubres que impactam o público e trata os conflitos sentimentais para o centro do espetáculo. Todas estas características dizem respeito ao tango, inclusive cronologicamente, uma vez que o mesmo emerge em Buenos Aires por volta de 1870.  O trágico enquanto melodrama finaliza com o indivíduo humano nu e desamparado em meio à ráfaga passional e tempestuosa que ele mesmo desencadeara. Tanto o mal quanto o bem são punidos, mas o primeiro o é por castigo às ações vis, o segundo por deixar-se arrastar aos abismos pelo primeiro. Desse ponto de vista, podemos considerar o tango como sendo o mundo no qual o sujeito se vê frustrado por outros sujeitos, assim como também pela própria sociedade na qual está imerso, que desiludem as necessidades e desejos mais profundos deste indivíduo, desejos e necessidades tais que incluem a destruição de tudo e de si mesmo.

Isso deve-se pelo fato de que não é possível existir, tal como afirma Williams (2002), uma cisão absoluta entre relações sociais evidentes, condições imediatas sine qua non de uma manifestação artística e aquelas relações já incorporadas às práticas culturais, tais como as articulações formais particulares da manifestação, pois estas são sociais e formais ao mesmo tempo. Essa estrutura de sentimento que se convenciona a uma determinada época não pode ser subtraída do desenvolvimento social de maneira geral nem tampouco reduzida a uma condição meramente local. Como demonstra Williams (1992, p.151), as variações e evoluções internas no que diz respeito às estruturas de sentimento das muitas e variadas épocas é exatamente essa “articulação culturalmente específica das relações dinâmicas entre o excepcional e o comum, o singular e o coletivo” e essa articulação “cruza com outras formas de discurso e com a história prática de uma sociedade sob as pressões de uma transição da maior importância”.

No terceiro capítulo, ainda em fase de finalização, demonstramos, topicamente, os traços trágicos/melodramáticos dentro da temática do fracasso amoroso, quais sejam a nostalgia, a melancolia, a degradação humana, o alcoolismo, o suicídio e o assassinato. A associação entre amor e destruição dentro do tango, uma associação profunda, torna-se universal em todas as letras dos tangos-canção. A tristeza torna-se o sentimento inerente ao tango que, no dizer de Gobello (1999), não foi feito para cantar o que se tem ou o que se conquista, mas o que se perdeu, o que foi embora.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

EAGLETON, Terry. Doce Violência – A ideia do Trágico. Tradução de Alzira Allegro. São Paulo: Editora UNESP, 2013.

GOBELLO, José. Breve historia crítica del tango. Buenos Aires: Corregidor, 1999.

HUPPETS, Ivete. Melodrama – O gênero e sua permanência. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000.

MAINGUENEAU, Dominique. Ethos Discursivo. Tradução de Adail Sobral. São Paulo: Contexto, 2006.

SARRAZAC, Jean-Pierre. Sete observações sobre a possibilidade de um trágico moderno – que poderia ser um trágico (do) cotidiano. Tradução de Lara Biasoli Moler. Pitágoras 500, v. 4. Abr. 2013.

WILLIAMS, Raymond. Cultura. Tradução de Lólio L. de Oliveira. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

___________________. Tragédia Moderna. Tradução de Betina Bischof. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

 Bruno Santos Melo


O TRABALHO IMATERIAL COMO POTÊNCIA MOLECULAR NA PRODUÇÃO LITERÁRIA DE MARIA VALÉRIA REZENDE: O REDESENHO DO PERSONAGEM SECUNDÁRIO NA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA

 

Bruno Santos Melo – bsantosletras@gmail,com

Dr. Luciano Barbosa Justino (Orientador)- lucianobjustino@hotmail.com

 

A literatura contemporânea, sobretudo em âmbito nacional, tem se apresentado como um importante meio de representação e afirmação de grupos minoritários (mulheres, gays, negros, pobres, velhos), tendo como condições de produção importantes transformações sociais, econômicas, políticas, dentre outras. Assim, tendo em vista o constante processo de silenciamento e subalternização enfrentado por estes grupos, a expressão por meio do exercício com a linguagem se configura enquanto linhas de fuga (DELEUZE; PARNET, 1998) para a construção de subjetividades.

O sujeito contemporâneo, situado em uma sociedade marcadamente fragmentada e solúvel (BAUMAN, 2001), carrega consigo questões que vão de encontro a dogmas, valores e imposições, pois ao passo que empreende a construção e destinação da própria existência, vivencia uma constante busca por si, resultando em um ser que experiencia um verdadeiro caos, tendo em vista a solubilidade das representações do real frente a este contexto de multiplicidade e heterogeneidade.

Estudos como o de Dalcastagnè (2005), Schollhamer (2009), Justino (2017), dentre outros, corroboram para a percepção acerca dos novos traços que a literatura contemporânea vem assumindo. Neste movimento de ressignificação, há uma perspectiva de democratização dos espaços, dos discursos e da própria construção de subjetividade em um viés de possibilidade de criação, se contrapondo à ideia de imposição ou mesmo essencialismo. No entanto, ainda há a predominância de um grupo seleto nas narrativas contemporâneas, a saber um público composto por “homens brancos, sem deficiências, adultos, heterossexuais, urbanos, de classe média…” (DALCASTAGNÈ, 2005, p. 15), de modo que se faz necessária uma maior visibilidade dos sujeitos marginalizados que foram/são durante um extenso tempo invisibilizados, bem como de suas vozes, que vem assumindo a enunciação e o próprio protagonismo em muitas obras da atual produção literária brasileira.

Diante disso, a problemática que norteia esta pesquisa busca debruçar-se sobre questionamentos como: Qual é o lugar que os personagens periféricos assumem na narrativa romanesca Quarenta Dias (2014) e como são representados e se representam? De que forma a produção imaterial empreendida pelos secundários corrobora para o desenrolar da trama? O personagem secundário, caracterizado muitas vezes como “menos importantes na história” (GANCHO, 2002), assume novos traços na literatura contemporânea?

A escritora paraibana Maria Valéria Rezende tem se apresentado como uma poderosa voz na literatura de autoria feminina, sobretudo por ceder o protagonismo de suas obras aos marginalizados e invisibilizados de uma sociedade que tende a estigmatizar àqueles que fogem aos padrões delimitados e embasados em valores machistas e patriarcais. Diante disto, faz-se necessária uma literatura que resista a séculos de preconceito e exclusão e que dê voz a estes sujeitos, que tiveram seus direitos subtraídos ou mesmo negados, oportunizando-lhes, dessa forma, o protagonismo e o empoderamento de suas próprias histórias.

Quarenta dias, obra elencada como enfoque para o trabalho a ser desenvolvido, narra a história de Alice, uma professora de francês aposentada que leva uma vida pacata e tranquila na cidade de João Pessoa, na Paraíba. A estabilidade vivenciada até então se desmorona com a chegada da filha, Norinha, à sua casa, no intuito de convencê-la a se mudar para Porto Alegre devido ao seu desejo de tornar-se mãe. Embora resista, Alice cede aos anseios e chantagens da filha e vai para o Sul. Ao chegar, recebe um telefonema de uma amiga que perdeu o contato com o filho após a ida dele a trabalho para a região. A personagem, por sua vez, empreende uma busca pelo filho perdido e, a partir disso, os principais fatos da narrativa se desenrolam.

A questão da representação é uma outra perspectiva pertinente nos estudos literários, porém, a literatura contemporânea brasileira reflete a existência de inúmeros grupos que historicamente foram marginalizados, o que ocasiona a necessidade não apenas da ideia de representação, a partir do olhar externo do outro, mas sim da carência de representatividade destes na literatura (DALCASTAGNÈ, 2005), que se dá por meio da produção discursiva e subjetiva, corroborando para a emancipação e visibilização destes sujeitos.

Neste entremeio de representações e representatividades, os personagens secundários apresentam-se não mais apenas enquanto meros “cabedais” para promoção do personagem protagonista. Afinal,

a própria existência do personagem secundário está associada ao pressuposto de que ele não produz trabalho de valor, serve apenas de cenário, de pano de fundo, de mola, para os virtuoses e as virtudes do narrador e de seu protagonista. (JUSTINO, 2017, p.7)

Partindo desse pressuposto, faz-se necessário repensar os valores imbuídos aos personagens secundários, atribuindo-lhes significações para além da ideia de inferiorização, enxergando-os enquanto figuras dotadas de extrema importância para o desenvolver das narrativas, como “aqueles que definem a grandeza das obras, que lhes dão densidade literária, poética, política, humana” (JUSTINO, 2017, p. 4). Praticamente ainda são inexistentes os estudos que observam a ressignificação do personagem secundário, fato compreensível, tendo em vista séculos de uma crítica literária pautada na supervalorização do protagonista em detrimento ao secundário.

A literatura, neste contexto de contemporaneidade, configura-se enquanto uma via de mão dupla, pois, ao passo que representa o real, o atribui novas significações. Assim, delineia um importante passo no processo de representatividade de negros, de gays, de velhos, de mulheres, dentre outros, ao passo que desestabiliza moldes preconceituosos, patriarcais, misóginos, nos quais a literatura, por séculos, foi forjada. Tendo em vista as estruturas de poder que o discurso é capaz de perpetuar, a oportunidade de expressão autônoma, sem a necessidade de mediação pela voz do outro, promove o principal meio para a constituição da subjetividade, bem como de uma coletividade, afinal, “[…] o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.” (FOUCALT, 2014, p. 10).

Dessa maneira, em um primeiro momento, como objetivo geral, delimitamos estudar o redesenho do conceito de personagem secundário na literatura contemporânea a partir da obra Quarenta Dias (2014), de Maria Valéria Rezende. Como específicos, destacamos discutir o conceito de personagem secundário convencionado pela crítica literária; evidenciar o trabalho imaterial empreendido pelos personagens secundários, bem como a representação destes no romance de Maria Valéria Rezende e refletir acerca da importância do personagem secundário para o desenrolar da narrativa.

No entanto, frente às discussões empreendidas na disciplina “Dialogismo e filosofia do Intercultural”, no corrente semestre, algumas modificações foram pensadas para o projeto, a fim de atribuir-lhe um maior dimensionamento teórico e crítico. Diante das problematizações conceituais postas na perspectiva filosofia deleuze-guattariana, observamos que seria relevante agregar alguns destes conceitos ao projeto a fim de desenvolvê-los na produção da dissertação em diálogo com o texto literário. Assim, interessa-nos pensar a ideia do trabalho imaterial dos personagens secundários como uma potência molecular, por meio postulados teóricos de Deleuze e Guattari (1995, 1996) e Guattari (1980, 1992).

A partir desta modificação, achamos por bem também expandir o corpus de análise, observando a manifestação do trabalho imaterial como potencial molecular do personagem secundário em três contos, de três distintos livros de Maria Valéria Rezende. Este, o segundo momento da dissertação, será antecedido por uma discussão a nível teórico acerca da primeirização dos segundos frente a diversos anos de uma crítica literária pautada nos personagens protagonistas. No terceiro e último momento, objetivamos evidenciar como os periféricos atuam e agenciam a trama de Quarenta dias (2014), à luz das discussões teóricas então realizadas.

A fim de observar o movimento empreendido pelos secundários também na produção contística da escritora selecionamos três narrativas. A primeira, “E se fosse”, da antologia A face serena (2018), narra a história de Aldinho, um garoto que tem a sua sexualidade questionada por apresentar alguns medos, fato que o leva a se submeter a uma situação extrema frente a um determinado personagem para demonstrar a sua masculinidade.

A segunda narrativa, “O mundo visto do alto”, presente na coletânea Histórias daqui e d’acolá (2012), retrata a chegada de uma moça do Rio de Janeiro a uma cidade do interior, fato que desperta a atenção de Tatuzinho, rapaz que mora no local e logo se apaixona pelos modos de ser da jovem, que se diferenciava das outras da cidade por seus trejeitos, gestos, beleza e modo distinto de falar.  

No terceiro conto, “Sagui”, presente no livro Modo de apanhar pássaros à mão (2006), nos deparamos com a história de Irene e seu filho, um personagem que também se faz presente em outras narrativas para além do livro em questão, como no romance O voo da guará vermelha (2005) e Ouro dentro da cabeça (2012). Neste conto, observamos as justificativas para melhor compreender os comportamentos e a construção da subjetividade do menino, que passou a morar com a avó devido à vida de prostituição que Irene leva.  

De acordo com as especificidades da proposta, escolhemos como modalidade a pesquisa a bibliográfica qualitativa, em que nos interessa “mais o processo do que simplesmente os resultados ou produtos”, como ressaltam Bogdan e Biklen (1994, p. 38). A pesquisa baseia-se no plano dos significados, das relações, das interações, em dados que não podem ser quantificados, conforme destaca Minayo (2001).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Tradução: Carlos Aberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

BOGDAN, Roberto C.; BIKLEN, Sari Knopp. Investigação qualitativa em educação. Porto: Porto Editora, 1994.

DALCASTAGNÈ, Regina. Personagens do romance brasileiro contemporâneo: 1990-2004. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 26. Brasília, julho-dezembro de 2005, p. 13-71. Disponível em: <http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/7380/1/ARTIGO _Personagem Romance Brasileiro.pdf> Acesso em: 06/10/2012.

DELEUZE, Gilles. e GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 01). Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.

____________.  Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 03). Rio de Janeiro: Editora 34, 1996.

DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Tradução: Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: 1998.

FOUCALT, Michel. A ordem do discurso. 24ª Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Editora Ática, 2002.

GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético.São Paulo: Editora 34, 1992.

________________. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980.

JUSTINO, Luciano B. A crítica diante do trabalho imaterial.  Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 29, v. 18, p. 1-19, 2017. Disponível em <revista.abralic.org.br/index.php/revista/article/download/402/394>. Acesso em 27 de setembro de 2017.

LAZZARATO, Maurizio; NEGRI, Antônio. Trabalho imaterial: formas de vida e produção de subjetividade. Trad. Mônica Jesus. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

MINAYO, Maria Cecília de Souza (org.). Pesquisa Social. Teoria, método e criatividade. 18 ed. Petrópolis: Vozes, 2001.

REZENDE, Maria Valéria. A face serena. Guaratinguetá: Penalux, 2018.

_________, Maria Valéria. Histórias daqui e d’acolá. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.

_________, Maria Valéria. Modo de apanhar pássaros à mão. São Paulo: Objetiva, 2006

_________, Maria Valéria. Ouro dentro da cabeça. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

_________, Maria Valéria. O voo da guará vermelha. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.

_________, Maria Valéria. Quarenta dias. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.

SCHOLLHAMMER, Erik. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

 Erick Ferreira Cabral 


A RELEITURA DOS MITOS GREGOS NO CINEMA DE HOLLYWOOD

ERICK FERREIRA CABRAL

LINHA DE PESQUISA: LITERATURA E HERMENÊUTICA

ORIENTADOR: Gilvan de Melo Santos

 

RESUMO

As descrições tradicionais das origens do mundo através de relatos os mais diversos, tanto quanto são diversos os povos espalhados pelo planeta, foram substituídas, em boa parte do mundo ocidental, pela teoria de Darwin, que passou a ser tida como oficial, sendo ensinada às crianças desde cedo nas escolas. O consenso em torno desta teoria traz implícita a ideia de uma superação das visões anteriores, levando à noção de ser ela a única visão verdadeira do conjunto da vida. Não obstante, a vida, como nos lembra Barthes (2007), nos aparece como um total indiscernível de estruturas e formas, mas é apropriada pelo saber científico no sentido de afastar o que nela há de inefável, em oposição à resignação com o escasso conhecimento sobre o todo vivida pelos antigos. Tal conhecimento se consolidava, muitas vezes, através de relatos orais, os quais nos chegam hoje em dia sob o nome de mitos. Estes podiam tratar das cosmogonias (explicação da origem das coisas), de relatos de heróis, entre outros. Hoje, tais relatos tendem a ser vistos como inverídicos e fantasiosos (ARMSTRONG, 2005), e o conhecimento que trazem não tem mais validade do que teria uma mera história de ninar crianças, de modo que o próprio termo ‘mito’ tornou-se sinônimo de mentira, de inverdade, acepção esta que, conforme veremos no presenta trabalho, configura-se bastante limitada em face do vasto conjunto de significados que este termo conota.

Em se tratando de mitologia, tomando o ponto de vista da cultura ocidental, é notável o legado deixado pela mitologia grega, da qual boa parte dos relatos nos foram herdados e permanecem sendo constantemente recontados, principalmente por parte do cinema. Apesar de haver toda uma riqueza material e visual encontradas nas artes plásticas, é no teatro e na literatura que encontramos uma maior gama e detalhamento de como seriam estas narrativas mitológicas (GRIMAL, 2013). No que respeita ao teatro, o Ocidente muito deve aos autores gregos, dentre os quais destacamos nomes como Ésquilo, Eurípides e Aristófanes. Na Literatura, encontramos nomes como Hesíodo, Sófocles e Homero, sendo este último o mais notável, cujas duas obras principais, a Ilíada e a Odisséia, deixaram profundas marcas na literatura ocidental e têm suas histórias contadas até a atualidade. Ambas tiveram uma releitura no cinema: a primeira, mais antiga, através do filme ‘Helena de Tróia’, de 1956, e a outra, mais recente, através do filme ‘Tróia’, de 2004; a segunda, por meio do filme ‘Ulisses’, de 1954, e de uma minissérie produzida pela NBC, ‘A Odisséia’, de 1997. Essas releituras são de uma importância notável, visto que, conforme já mencionado, os relatos mitológicos perderam a força enquanto explicações da realidade, mas sobrevivem sob nova configuração. É precisamente a nova ‘roupagem’ desses relatos que achamos por bem investigar, analisando o que ainda sobrevive dos mitos antigos, o que há de novo e o que se perdeu. Abordaremos a tradução intersemiótica (PLAZA, 2003) do mito por parte do cinema, dada a dimensão que este alcança enquanto forma de arte. Metz (1972, p. 16) nos dá uma ideia desta dimensão, ao lembrar da “impressão da realidade vivida pelo espectador diante do filme. Mais do que o romance, mais do que a peça de teatro, mais do que o quadro do pintor figurativo, o filme nos dá o sentimento de estarmos assistindo diretamente a um espetáculo quase real.”

Devido à sua importância na cultura Ocidental, é no âmbito da mitologia grega que será feito nosso estudo. Tendo em vista a imensidão destas narrativas mitológicas e suas diversas fontes, variações e formatos, achamos por bem analisar nelas aquilo que há de estável, que possa ser encontrado num mesmo formato e num mesmo autor. Homero sintetizou e estabilizou bem diversos desses relatos na antiguidade. Além disso, suas duas grandes obras foram devidamente revisitadas pelo cinema, facilitando a leitura delas sob esses dois meios, a saber, a poesia e o meio cinematográfico. Visto serem duas obras de grande porteSerá, portanto, a obra de Homero, Odisseia, nosso objeto de estudo. Com ela iremos comparar as duas adaptações cinematográficas (Ulisses, 1954, direção de Mario Camerini, e A Odisséia, 1997, direção de Andrey Konchalovsky). Da poesia homérica em Odisseia iremos extrair seu núcleo duro, seu mitema, conceito estabelecido por Gilbert Durand no livro “Mito, Símbolo e Mitodologia” (1982). Feito isso, analisaremos as duas obras cinematográficas supracitadas e nelas iremos abordar a permanência ou ausência desses mitemas e, a partir daí, a constatação do que se perdeu e do que se ganhou nessa adaptação de uma mesma história.

Fabrício Batista de Sousa


AS RELAÇÕES LÉSBICAS E SUAS PRODUÇÕES DE SENTIDOS NO JOGO
ÉROTICO DOS CORPOS EM AZUL É A COR MAIS QUENTE

Fabrício Batista de Sousa (UEPB)
Orientador: Antônio de Pádua

Diversos fatores estão imbricados quando discutimos questões de gênero dentro dos
estudos culturais. São questões cientificas, sociológicas, religiosas, políticas e inúmeras
outras que concernem discussões em torno do gênero. Segundo Zolin (2004), desde o
século XX, com o desenvolvimento do pensamento feminista, a mulher vem sendo
evidenciada como objeto de estudo, sobretudo no âmbito da literatura. O sujeito mulher
é historicamente marcada pela subordinação aos referidos paradigmas da sociedade
patriarcal, bem como pela dominação a obedecer aos estereótipos marcados pelo
gênero, e que por muitas vezes são sujeitadas ao desejo masculino. Portanto, se os
desejos sexuais das mulheres heterossexuais já são permeados de represálias, isso tudo
se torna mais grave quando as mulheres não são heterossexuais.
As lésbicas são oprimidas e marginalizadas no meio social, possuem uma dupla
represália que didaticamente pode ser entendida por “ser mulher” e sentir atração/desejo
pelo mesmo gênero Elas impelem uma forte carga cultural regada de preconceitos e
discriminações quanto à sua sexualidade. Na literatura, também existe um forte
esquecimento para com as lésbicas e suas representações, por vezes, elas são
estereotipadas e marginalizadas. As relações entre lésbicas em sua maioria são
silenciadas pela mídia, e por vezes, suas relações são super sexualizas pelo olhar
masculino.
Temos o romance gráfico (graphic novel) como um fenômeno advindo das histórias
em quadrinhos (HQ), que surgiu no fim da década de 1970, e atualmente vem ganhando
espaço no meio literário com uma alta qualidade estética e temáticas atuais. A temática
da lesbianidade está sendo trazida à tona por vári@s cartunistas que por meio de suas
personagens visibilizam a existência das relações afetivo-sexuais, fazendo com que o
romance gráfico seja uma forte ferramenta para discussões das sexualidades.
Outra ferramenta importante é o cinema, que atualmente vem discutindo várias
práticas de discriminações e repressões gays/lésbicas. Lógico que existem certas
produções que correm o risco de fixar estereótipos de gays e lésbicas como sujeitos
vitimados pela sociedade e por vezes suas relações sexuais são invisibilizadas, o que
não acontece com as relações heterossexuais. No entanto, por outro lado, são filmes que
podem favorecer a autoestima, representando-os como agentes dinâmicos nos processos
de luta, libertação e transformação social, o que faz o sucesso do cinema mundialmente.
O cinema instiga o desejo, o mundo dos afetos, sensações e sentimentos, e atua
sobre a libido, o erotismo, a sensualidade, influindo na relação entre os homens e os
seus objetos de desejo. De acordo com Paiva (2007), o olhar é uma forma de possuir e
as telas aproximam os espectadores do corpo, pele, olhos, boca, dentes e músculos dos
homens e mulheres do cinema. Uma vez que às estrelas do cinema é conferida uma
beleza física extraordinária, elas podem arrebatar os sentidos dos espectadores,
estimulando a ilusão desses serem correspondidos em suas paixões voyeuristas pelas
criaturas mitológicas projetadas nas telas.
Dessa forma, temos como corpus de análise dois suportes de linguagem: o
romance gráfico (graphic novel) “azul é a cor mais quente” (Le Bleu est une couleur
chaude, original em francês, 2010) de autoria de Julie Maroh e a versão
cinematográfica, com a mesma nomeação dirigida por Abdellatif Kechiche (La vie
d’Adèle no original francês, 2013).
Temos como objetivo geral analisar e problematizar a relação lesboerótica das
personagens principais em ambos suportes de linguagem, com o propósito de perceber
como os corpos das mulheres lésbicas estão dispostos e são configuradas para
(des)silenciar os prazeres corporais, bem como identificar quais suas produções de
sentidos no jogo erótico dos corpos, tendo em vista que, o romace gráfico é de autoria
feminina e a produção cinematográfica é de autoria masculina. Para isso,
responderemos os seguintes questionamentos: O fator de gênero mudaria o olhar para a
representação das lesbianidades e seus corpos, de que forma? Como as mulheres
lésbicas estão subjetivadas nos suportes? Como os corpos foram (re)configurados como
produção de sentido? Mesmo com as aproximações e distanciamentos entre os dois
suportes de linguagem, em que medida os corpos das mulheres lésbicas são erotizados?
Como seus corpos resistem e usufruem do prazer?
Partimos do pressuposto de que as relações sexuais entre lésbicas ainda são
bastante feitichadas pelo olhar masculino, principalmente na indústria pornográfica,
assim, concedendo a lógica do regime heterossexual, machista, falocêntrico, misógino e
homofóbico. Segundo Wittig (1992) a sociedade heteronormativa interpreta a cultura
como totalizante, ou seja, existe um heterossexismo que não enxerga para além das suas
relações sexuais binárias. Dessa maneira, as lésbicas são colocadas no jogo de poder de
uma heteronormatividade, em que as práticas lesboéroticas, na maioria das vezes,
servem para satisfazer os prazeres do sexo masculino.
Temos a mídia como uma ferramenta que consegue fomentar, influenciar e
construir dentro de um imaginário social uma série de estereótipos prejudiciais às
lésbicas. É preciso pensar e problematizar como as representações das lesbianidades
fomentam tais discursos, na medida em que, normalizam tais condutas desses sujeitos, e
por outro lado, pensar que, algumas representações também desconstroem a ideia
sexualizada da mulher lésbica, pois de fato, existe um público de mulheres que pelo
processo de verossimilhança apontam para um realismo problematizado através dos
sujeitos ficcionais das obras.
Desse modo, através das relações intersemióticas, investigaremos as
transposições de mídia e cultura do romance gráfico para versão cinematográfica, com
intuito de discutir como os discursos e práticas operam sobre a construção do corpo das
lésbicas, visto que, cada representação do corpo seja através de desenho, fotografia,
cinematografia se constrói dentro de uma atmosfera que contém uma ideia a ser
transmitida em um espaço de comunicação e significação.
Ambos suportes contam a história de amor entre duas pessoas do mesmo gênero
feminino, assim, proporcionando discussões sobre os desafios internos e externos da
sexualidade, tendo como intuito quebrar tabus e trazer à tona a discussão das
lesbianidades. A história em quadrinhos de Julie Maroh inicia-se com Emma, uma
jovem pintora e homossexual, que lamenta a morte de sua ex-namorada Clémentine. Ao
receber da família de Clémentine diários pessoais, acaba por descobrir a verdadeira
intensidade dos sentimentos de sua ex- namorada, mesmo após o rompimento da
relação. A vida de Clémentine vai sendo contada através de suas vivências e
depoimentos, dos textos escritos nos diários, com trechos que pontuam momentoschave
da história, principalmente o da descoberta da sua sexualidade.
Na versão cinematográfica dirigida por Abdellatif Kechiche (2013), a
personagem Clémentine tem seu nome mudado para Adèle, fazendo relação com o
mesmo nome da atriz que a interpreta, Adèle Exarchopoulo. O filme se diferencia em
muitos aspectos da proposta por Maroh (2010) no romance gráfico, desde a forma de
transmitir os sentimentos e a intimidade das personagens, até o próprio conteúdo linear
e desfecho da história é modificado. A nossa análise tende de perceber o contexto
histórico-social da obra e de sua tradução audiovisual, assim, levando em consideração
que o trabalho está sendo traduzido para um sistema de signos diferente e que, portanto,
deve apresentar novas estratégias de representações. Dick (1990), nos diz que a
fidelidade em tradução é impossível, portanto temos essa visão de que é um trabalho
para novos contextos culturais e temporais.
A nossa análise terá como base os estudos de corpo, gênero e sexualidades, no
tocante das lesbianidades e teorias da tradução intersemiótica A partir dos resultados
obtidos, esta pesquisa pretende propor discussões consistentes que contribuam para o
entendimento do processo tradutório audiovisual, bem como para a crítica das relações
de gênero e representações das lesbianidades em ambos suportes.
O aporte teórico-crítico utilizado para análises conta com os princípios teóricos
de: Barbieri (2017), Eisner (2001) e Mccloud (2005) que trabalham com história em
quadrinhos e narrativas gráficas; Mott (1987), Wittig (2009), Butler (2003), Wolff
(2011) Sedgwick (2007), Gallotti (2005) Xavier (2007) com discussões em torno do
corpo, gênero e das lesbianidades; Eco (1996) e Plaza (2003), essenciais para a
compressão e discussões sobre os processos de traduções, sobretudo intersemiótica.
Portanto, como categorias de análise, temos: I) estudos sobre o corpo II) estudos de
gênero e sexualidades; III) romance gráfico (graphic novel), os formatos: a) obra
original, b) obra traduzida e c) adaptação fílmica; IV) relação ente literatura e cinema
V) tradução intersemiótica.
Pretendemos concluir a dissertação no segundo período de 2019. No momento, a
presente pesquisa encontra-se em andamento através das leituras teóricas que servirão
de base para análises, bem como a escrita do primeiro capítulo (teórico), que tem como
objetivo trazer discussões sobre o romance gráfico (graphic novel) e sua diferença com
história em quadrinhos (HQ); sobre corpo; sobre as lesbianidades; sobre como as
mulheres lésbicas foram/estão representadas no cinema e sobre tradução intersemiótica.
O segundo capítulo será destinado à análise comparativa do romance gráfico com o
filme, com o intuito de perceber suas aproximações e distanciamentos em torno do
enredo e das representações das personagens. O terceiro capítulo trará como foco a
problematização da temática, suas produções de sentido, tentando compreender como as
técnicas e configurações se materializam nas subjetividades das personagens do
romance gráfico para o cinema.

Referências
BARBIERI, Daniele. As Linguagens dos Quadrinhos. São Paulo: Peirópolis, 2017.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira. 2003
EISNER, Will. Quadrinhos e Arte Sequencial. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
ECO, U. Tratado Geral de Semiótica. 2ª ed. São Paulo Perspectiva, 1996.
GALOTTI, Alicia. Kama-sutra lésbico, para viver a sexualidade em liberdade.
Planeta, 2005.
MCCLOUD, Scott. Desvendando os Quadrinhos. São Paulo: Makron Books, 2005.
MOTT, Luiz R. B.O lesbianismo no Brasil. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987.
PLAZA, J. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987
SEDGWICK, E. K. A epistemologia do armário. Campinas-SP, Cadernos Pagu, n. 28,
jan./jun., 19-54, 2007
VIÑUALES, Olga. Lesbofobia. Barcelona: Bellaterra, 2002.
WITTIG, Monique. The Straight Mind: and other essays. Boston: Beacon Press,
1992.
XAVIER, Elóida. Que corpo é esse?. O corpo no imaginário feminino. Florianópolis.
Ed. Mulheres, 2007.

Heloisa Costa Rigon


Clorinda Matto de Turner: a literatura como denúncia dos conflitos políticos e sociais no Peru

Discente: Heloisa Costa Rigon

Orientadora: Dra. Francisca Zuleide Duarte

O presente trabalho tem como objetivo apresentar o que foi elaborado na pesquisa intitulada “Clorinda Matto de Turner: a literatura como denúncia dos conflitos políticos e sociais do Peru” a partir do início do ano letivo de 2018 até o momento e os estudos que ainda serão desenvolvidos até o processo de qualificação.

ESTÁGIO ATUAL DA PESQUISA

Iniciamos a pesquisa analisando as confluências de temas das disciplinas cursadas no primeiro semestre do programa (2018.1) e de trabalhos apresentados e publicados em eventos acadêmicos neste mesmo período. As leituras e o processo de escrita focaram-se em três ramos: a questão agrária e o “problema do índio” no Peru no final do século XIX com base em Cornejo-Polar (2003), Galastri (2017), Mariátegui (2007; 2010); o ativismo intelectual etnográfico de Clorinda Matto (1852-1909) em prol das mulheres indígenas, a sua participação ativa no grupo feminista peruano na épocaque envolvia outras escritoras, e as consequências que ela sofreu pela opressão do Estado e da Igreja a partir da teoria de Cornejo-Polar (2003), Denegri (2017), Klinger (2006), Mártinez Hoyos (2010), Meléndez (1998), Spivak (2006), Torres de Calderón (2006); por fim, sobre a pesquisa em literatura hispano-americana. Com exceção deste último ponto, que está relacionado ao trabalho como um todo, os demais fazem parte do desenvolvimento da dissertação. A saber: Para compreender o contexto político-social em que se encontrava o país andino no último trimestre de 1800, acreditamos ser oportuno analisar a situação precária enfrentada pela comunidade indígena. Além de o tema estar presente na obra objeto de análise Aves sin nido (1889), o envolvimento da autora na luta por melhores condições dos índios lhe rendeu críticas com base em contradições entre sua militância e sua vida privada. Este estudo foi desenvolvido em formato de artigo para a disciplina Tópicos especiais: Ecocrítica e somente porque a relação política, étnica e social da terra e do índio está presente nos estudos que envolvem o ativismo ambiental através da literatura. No entanto, o trabalho não seguirá por esse caminho, como já foi dito, foi a conciliação entre o tema da pesquisa e da disciplina mencionada. Na concordância com a disciplina Literatura, Memória e Testemunho, o trabalho final foi focado no ativismo intelectual de Clorinda e as consequências que ela sofreu – incluindo o exílio e seu processo de escrita durante tal período. Também analisamos o papel da etnografia em Aves sin nido (1889) entre dois aspectos, o “observador participante” e a “interpretação de segunda mão”. O primeiro está relacionado a vida ativa de Clorinda no campo, sua vivência lhe dá credibilidade ao falar pelo índio. O segundo ponto faz referência ao fato de ela ser uma mulher intelectual branca falando pelas mulheres camponesas indígenas, explorando a legitimidade da voz que representa outra classe social. No momento presente, o estudo da pesquisa está caminhando para a militância do feminismo no Peru praticada pela escritora peruana e demais companheiras literárias. Neste ponto, também abordaremos a utilização da literatura como fonte de denúncia ao referir-se do abuso sexual que as indígenas peruanas eram submetidas pelo clero identificado na obra Aves sin nido (1889). Todo esse movimento foi significativo na sociedade peruana e latino-americana marcando uma época. Este estudo será apresentado no I Congreso Internacional Clorinda Matto de Turner compondo o GT El alegato de Matto y las escritoras del último tercio de XIX contra la violencia de género y a favor de la defensa de los derechos humanos que irá ocorrer em Cusco (Peru) nos dias 06 a 08 de novembro do presente ano.

ESTUDOS A SEREM DESENVOLVIDOS

Dentro do que foi planejado no projeto de pesquisa, além de aprimorar os assuntos já apresentados, os pontos que ainda serão desenvolvidos são:

 A relação da literatura com a sociedade – ao levar em conta a repercussão que causou a publicação de Aves sin nido (1889) no País;

 Sobre a literatura peruana no final do século XIX, mais específico sobre a literatura indigenista e sua obra pioneira Aves sin nido (1889);

 O contexto da literatura de autoria feminina peruana e hispano-americana na época de Clorinda Matto.

METODOLOGIA E FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Os estudos serão desenvolvidos primeiramente com pesquisas acerca dos aspectos histórico-sociais do Peru no recorte do século XIX, mais precisamente em sua segunda metade, e a compreensão da relação entre literatura e sociedade. Para estas investigações, serão utilizadas as obras de Mariátegui (2007), Candido (2006), Spivak (2010) e o artigo de Ivete Walty e Maria Zilda Cury (2013). Logo, a elaboração das considerações sobre o contexto social exposto na literatura peruana do período decimonónico, com ênfase no gênero novela indigenista e mais específico na obra de Clorinda Matto, teremos como base os textos de Álvarez (2013) e de Velázquez Castro (2010). No que se refere à literatura de autoria feminina, abordaremos a ótica de Wangüemert (1998) e Pizarro (2004, 2006) para a América Latina e de Denegri (1996) para o país andino. Para as vertentes cultivadas pela autora peruana e a posição de sua obra, encontraremos informações nos escritos de Manrique (1989), Ward (2001) e Cornejo Polar (2003).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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 Isabele Carla dos Santos Lins


UMA ANÁLISE SOBRE A SITUAÇÃO DA MULHER MOÇAMBICANA NA OBRA ALEGRE CANTO DA PERDIZ, DE PAULINA CHIZIANE

 

Mestranda: Isabele Carla dos Santos Lins

Orientadora: Francisca Zuleide Duarte de Souza

 

Paulina Chiziane, escritora de origem rural, nascida em Manjacaze, Moçambique, aborda temas, como a denúncia da sofrida vida dos africanos, os efeitos causados pela colonização, a dupla marginalização da mulher e os agravantes da guerra civil, acontecida no pós-independência. Autora de romances, como: Balada de amor ao vento (1990), Ventos do Apocalipse (1999), O Sétimo Juramento (2000) e Niketche – Uma história de amor e poligamia (2002) e o Alegre Canto da Perdiz (2008), ela é uma das vozes mais importantes na atual literatura moçambicana.

Chiziane, pertence a geração de escritores que surgiram após a emancipação política. Foi a primeira romancista do seu tempo. Ela utiliza em seus romances a oralidade, recuperando sua tradição em suas histórias, que de acordo com Bonnici (2012), essa recuperação nas literatura africana é feita a partir da oratura. Diante disso, a Paulina em uma entrevista, alega que suas narrativas são histórias, que tem muito a ver com a oralidade (LEITE, 2003 apud in Grande reportagem, 2002).

A escrita da Paulina Chiziane é pós-colonial, visto que ela publica seu primeiro livro, Balada de amor ao vento, em 1990, após a emancipação política. O termo pós-colonial, segundo Ashcroft, Griffiths e Tiffins (1991) é usado para descrever uma cultura que foi influenciada pelo processo imperial desde a colonização até os dias atuais (BONNICI, 2012). A partir desse conceito, entendemos que a literatura pós-colonial “pode ser entendida como toda a produção literária dos povos colonizados pelas potências europeias entre os séculos 15 e 21.” (BONNICI, 2012, p. 19).  Com isso, no período pós-independência, as literaturas africanas de língua portuguesa “encontram maneiras próprias de dialogar com as ‘tradições’” (LEITE, 2003). Nesse processo, muitos escritores, como a Paulina, começaram a ter maior visibilidade.

Outro fator de extrema importência na escrita de Paulina, é o fato de como ela aborda a mulher em suas obras. É notório que a personagem feminina em suas narrativas tem o um teor essencial para a contação das histórias do seu povo, utilizando a imagem da mulher africana para mostrar como o processo de colonização teve um papel central na vivência, na cultura e na tradição do povo moçambicano.

Na maioria dos seus textos, é possível ver uma construção da mulher no decorrer das obras. Algumas delas rompem com o ideal de mulher frágil, submissa ao homem, virginal. Em seus textos, tomam um papel de uma mulher forte; de uma mulher que precisa fazer de tudo para sustentar suas famílias; de uma mulher que anda na fronteira do bem e do mal; de uma mulher ambiciosa. No entanto, é mostrado também como a mulher se porta numa cultura dominada por homens, em que ela tem o papel de ser submissa: esposa e cuidadora dos filhos.

A patir disso, o corpus escolhido é o livro Alegre canto da perdiz (2008), que aborda a história de uma família que viveu no período colonial em Moçambique. Delfina, uma das personagens, é casada com um negro, porém não se contenta com a vida que o marido pode dar. Então vai à procura de um branco, para conseguir uma vida melhor. Uma mulher ambiciosa, usada pela mãe para conseguir sustento para família com a venda do seu corpo, cresce escutando que ela só teria uma vida melhor, diante desse processo de colonização, se tivesse um filho mulato. Ela ultrapassa limites, vende também uma das suas filhas, por ambição. Sendo assim, as intempéries do processo colonial são expostas. Essa família viveu em tempos obscuros, isso influenciou no seu modo de viver.

Sendo assim, a temática da venda do corpo foi um fator importante para o processo de escolha do objetivo geral da dissertação, que é analisar a situação da mulher moçambicana na obra Alegre canto da Perdiz. Para isso, discutiremos sobre a importância do corpo e da voz feminina na obra; faremos uma reflexão sobre gênero e analisaremos a condição social da mulher no meio em que vive.

Logo a problemática sobre a condição dessa mulher, leva-nos a perguntar como a colonização teve efeito no modo de vivência das personagens femininas na obra? E algumas de nossas hipóteses, é que o período colonial degradou a forma de viver do povo moçambicano, rompeu com sua cultura, seus princípios, fazendo com que essas personagens se submetessem a certas situações indignas. Tornando-se assimiladas e marganalizadas tanto pelo colonizador, quanto pelos homens presente em sua família.

Em relação a metodologia, será usado um estudo qualitativo-descritivo (MOREIRA; CALEFFE, 2006), visto que pretendemos entender a situação marginalizada das personagens mulheres no romance. Para o desenvolvimento desta, está sendo colhido bibliografias para servir de aporte teórico para nossas discussões. O objeto de análise está sendo esmiuçado e estudado, a partir dos objetivos específicos, buscando atender o resultados esperados. O próximo passo será a escrita dos capítulos que constituem nosso referencial teórico. Logo depois, a produção da análise do objeto de pesquisa de acordo com o objetivo geral e os específicos.

No que diz respeito ao fundamentos teóricos, usaremos o livro Eu, mulher… por uma nova visão de mundo (2013), da escritora Paulina Chiziane, assim como algumas entrevistas dadas por ela, como “Ser escritora é uma ousadia!!!” (2002), para compreendermos a situação da mulher no romance Alegre canto da perdiz (2008). Para além disso, discutiremos sobre a importância do corpo e da voz feminina presente na obra, como instrumento de transformação da imagem da mulher moçambicana, utilizando autores como: Mata e Padilha (2007), Chabal (2008) e Bahule (2013). Desse modo, como iremos discutir a problemática da mulher duplamente submissa e subalterna, nos ateremos, também,  as questões de gênero, usando Butler (2003), Hollanda (1994), Beauvoir (1980) e Spivak (2010). Finalizando, para abordamos o contexto pós-colonial, nos apoiaremos em Bonnici (2012), Mata (2007) e Leite (2003).

 

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 Itamara Patricia de Souza Almeida


LITERATURA E NEGRITUDE: A POEXISTÊNCIA NA LITERATURA MARGINAL/PERIFÉRICA DE MARIANA FÉLIX E MEL DUARTE

Itamara Patricia de Souza Almeida (Mestranda /UEPB / PPGLI)

Profª Drª Rosilda Alves Bezerra (Orientadora / UEPB /PPGLI)

 

RESUMO

 

Inseridas no que vem sendo denominado, pelos próprios escritores e escritoras, de literatura marginal/periférica, logo uma literatura que traz em seu fazer um posicionamento político-ideológico declarado, Mariana Felix e Mel Duarte são moradoras de periferias da cidade de São Paulo, trazem em suas publicações a relação com o cotidiano, as experiências vividas pela sua condição social de classe, gênero e raça/etnia, aquilo que Conceição Evaristo (2006) denomina de “escrevivência” e que aqui parafraseando a Evaristo, chamamos de “poexistência”. Neste sentido, pretendemos com essa pesquisa investigar a produção poética das escritoras negras Mariana Félix e Mel Duarte, levando em consideração as relações entre os lugares étnicos, sociais e de gênero das poetas e o diálogo que eles estabelecem entre a literatura marginal/periférica e a literatura afro-brasileira, a partir das representações identitárias coletivas e individuais calcadas na ancestralidade negra presentes em suas obras, entendendo, como Duarte (2007) quanto a literatura afro-brasileira, que a mesma possui temática, autoria, ponto de vista, linguagem e público leitor.

Palavras-chaves: Literatura marginal/periférica. Literatura afro-brasileira. Mariana Felix. Mel Duarte.

 

INTRODUÇÃO

“Sou preta e escritora!” recita uma mulher negra, de aproximadamente 30 anos de idade, moradora da Zona Leste do estado de São Paulo e que há mais de quatro anos produz poesias nos saraus e slams das periferias do seu estado. Seu nome é Mariana Felix, escritora periférica e professora da rede pública. Ao mesmo tempo que outra bradava, na FLIP em 2016: “Sou filha da luta, da puta/ A mesma que aduba esse solo fértil/ A mesma que te pariu”. A autora desse trecho chama-se Mel Duarte, mulher negra, paulistana, poeta e rapper, ganhadora do campeonato mundial de poesia no Rio de Janeiro em 2016 mesmo ano em que lança seu segundo livro intitulado: Negra, nua e crua. A produção literária de ambas, compreendidas aqui como o encontro entre a poética e a vida: poexistência, bem como os aspectos sociais, étnicos, de gênero, de classes e os contextos de produção e circulação dos seus textos darão os contornos deste trabalho, ou seja, são o “objeto” de estudo desta proposta de pesquisa. Contemporaneamente estamos vivenciando nas periferias do Brasil um movimento literário em ascendência da cultura negra que está inscrito na dimensão dos debates em torno das políticas culturais e afirmativas que possibilitaram, nos últimos anos, ao menos, colocar na centralidade do debate político brasileiro a questão do negro, da ancestralidade como elementos importantes para formação de nossa cultura e de nossa identidade nacional. Além disso, vale reconhecer que a busca por outros referencias de representações coletivas e individuais de nossas identidades, como as memórias e raízes nos nossos antepassados escravizados e indígenas  só foi possível em um contexto de novos paradigmas do pensamento contemporâneo, não apenas na literatura, mas na sociedade, e, nesse ponto, a “virada linguística” decorrente do pensamento pós-estruturalista, nos anos 1960, deu abertura para o desenvolvimento de outras formas de pensar o texto literário, sua autoria, produção, circulação e leitura, a partir dos Estudos Culturais contemporâneos, da crítica pós-colonial, dos debates feministas e das teorias críticas raciais, que têm dado grandes contribuições para expandirmos nossa percepção sobre o conceito de literatura. Assim, a necessidade de investigar a produção literária, feita por mulheres negras, denominada de literatura marginal/periférica, aproximada com a literatura afro-brasileira, e o que esta literatura diz sobre as condições sociais, de classe, raça/etnia e gênero das duas escritoras escolhidas aqui: Mariana Felix e Mel Duarte, se inscrevem como elementos centrais da motivação da pesquisa e da contribuição que pode trazer para os estudos literários dentro de uma dimensão da literatura que se aproxima dos sujeitos e que, transpondo os muros da academia, darão a esta o tom do multicolorido com o qual se pinta o povo e com o qual se deve pintar a universidade, buscando responder questões como: quais são as representações que fazem de si, enquanto mulheres negras, escritoras e periféricas? o que condicionantes territoriais, culturais, de raça/etnia, de classe social dizem sobre a construção de identidades individuais e coletivas? e mais, como essas questões, da ordem do gênero, da raça/etnia, da classe social, atravessam e tomam lugar na poética das duas autoras? o que esse texto literário contemporâneo, que emerge de sujeitas marginais, que narra os cotidianos da periferia e seus indivíduos/coletivos, nos convoca a pensar sobre novos modos de conceber a literatura? como duas jovens poetas periféricas negras e suas produções podem ampliar o escopo de investigações no campo da crítica literária atual, dos Estudos Literários em diálogo com agendas interculturais na contemporaneidade? Portanto, destacamos a literatura marginal/periférica diante da multiplicidade dos conceitos e definições de literaturas para construção deste projeto de pesquisa, evidenciando seu caráter étnico, de gênero e de classe em diálogo com a literatura afro-brasileira, respeitando a definição de literatura marginal/periférica dadas pelos sujeitos que a produzem, mas com a compreensão de que esta possui todos os elementos que a configuram como literatura afro-brasileira: temática, autoria, ponto de vista, linguagem e público leitor (DUARTE, 2007).

 

METODOLOGIA

 

Esta pesquisa, por ser de cunho bibliográfico e de natureza interpretativa, logo se trata de uma pesquisa qualitativa. Configura-se nos estudos dos aspectos temáticos das obras selecionadas das duas autoras em questão: Mania e Vício ambos de Mariana Felix publicados em 2016 e 2017 respectivamente e o livro mais recente da escritora Mel Duarte: Negra, Nua, Crua publicado em 2016, compondo assim o corpus deste trabalho. Pretendemos investigar a produção poética das escritoras, buscando compreender as relações entre os lugares étnicos, sociais e de gênero (1). O diálogo esses textos estabelecem entre literatura marginal/periférica e a literatura afro-brasileira no contexto de produção contemporâneo, a partir das representações identitárias coletivas e individuais calcadas na ancestralidade negra presentes em suas obras (2). Pensar/problematizar o território (favela) como um território multicultural e das negociações, nem sempre justas, das diferenças e identidades (HALL, 2006) e quais as tensões que implicam na composição dos textos no que diz respeito ao modo de organização coletiva com símbolos próprios desses lugares (3). Por fim, refletir sobre a relação entre a oralidade e escrita muito recorrente na produção da Literatura marginal/periférica. Até o presente momento demos prioridade no cumprimento dos créditos, leituras das bibliografias, fazer as relações necessárias dentro das disciplinas com a nossa proposta de pesquisa nos trabalhos finais exigidos nas disciplinas.

 

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

 

Buscaremos nos pressupostos teóricos problematizar sobre a formação da literatura brasileira (CANDIDO, 2006:2011) e (BOSI, 2005), no que diz respeito, mais especificamente a formação da literatura nacional. Uma crítica literária imbricada com a abordagem histórica e materialista (EAGLETON, 2006:2011), (BENJAMIN, 1989; 1994) por compreendermos como Eagleton (2011) que as obras literárias não partem apenas do imaginário do autor e sim que fazem parte de modos de interpretar o mundo, pois é o ser social que determina a consciência e não o contrário. Também elencamos algumas produções que tratam especificamente da literatura marginal/periférica e afro-brasileira: (HOLLANDA, 1992), (FERREIRA, 1981), (BALBINO, 2016), (DUARTE, 2007), (NASCIMENTO, 2006) e (VIEIRA, 2015), (TENNINA, 2017). E evidentemente um aporte teórico pensando uma crítica literária aproximada dos Estudos Culturais, Pós-modernos e Pós-coloniais também em relação com a literatura, negritude e gênero: (BONNICCI, 2000), (HALL, 2006), (CANCLINI, 2008), (SPIVAK, 2010), (SANSONE, 2004), (EVARISTO, 2007), (DAVIS, 2016), (SAFFIOTI, 2013; 2015), (SOUZA, 2005).  Ciente de que ainda estamos no início da pesquisa é importante ressaltar que há limitações teóricas que buscaremos dar conta nos próximos períodos no tocante às dimensões epistemológicas e teóricas que moverão a pesquisa, é preciso ainda pontuar a intensão de aproximar a literatura marginal/periférica da literatura afro-brasileira, considerando que o conceito de literatura marginal/periférica ainda é um conceito em construção e ainda há pouca produção teórica acerca do tema.

 

REFERÊNCIAS

 

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NASCIMENTO, Érica Peçanha. Literatura marginal: os escritores de periferia entram em cena. São Paulo, 2006. 211 págs. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). Universidade de São Paulo – USP.

SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes. 3ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2013.

 

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VIEIRA, Aline Dayques. O clarim dos marginalizados: temas sobre a literatura marginal/periférica. 1ª ed. Curitiba: Appris, 2015.

 Jailma da Costa Ferreira 


AUTOFICÇÃO, MEMÓRIA E POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS

 

Jailma da Costa Ferreira

Mestranda – jailma.jdf@gmail.com

Dr. Luciano Barbosa Justino

Orientador – lucianobjustino@hotmail.com

 

Nos estudos literários contemporâneos, encontramos inúmeras discussões acerca da autobiografia e da autoficção no texto narrativo. Percebe-se, contudo, uma quase inexistência das discussões sobre a autoficção na poesia. Segundo Diana Klinger, na autoficção “o escritor não tem como prioridade contar sua vida, mas elaborar um texto artístico, no qual sua vida é uma matéria contingente” (KLINGER, 2007, p. 39). Nesse sentido, podemos afirmar que a poesia, assim como o texto narrativo, pode ser também autoficcional, ao considerarmos a autoficção não como um novo gênero, mas como um dispositivo (NASCIMENTO, 2017).

Contudo, a fim de melhor especificar esta concepção, é importante compreendermos que a autoficção distingue-se da autobiografia, e isso é identificado “pelo papel que concedem ao eu: suporte da invenção para a ficção e fonte da experiência a transmitir, para a autobiografia” (KLINGER, 2007, p. 42).  Embora possa partir da experiência autobiográfica, a literatura (e leia-se também a poesia) “transborda, ela é potência da linguagem, ela é o incontrolável” (MARTINS, 2014, p. 96), é a vida inventada.

Nessa perspectiva, entendemos a poesia como uma escrita cujo eu está ininterruptamente em movimento, isto é, a poesia realiza um movimento para fora do eu (JUSTINO, 2018); esse eu, que está em construção, é fragmentado, é “um sujeito não essencial, incompleto e suscetível de autocriação” (KLINGER, 2007, p. 44).

Isto posto, podemos dizer que o eu poético, nas poesias a serem estudadas, não se limita ao testemunho, ao espaço autobiográfico, mas agencia várias singularidades, especialmente aquelas que estão à margem. Dessa forma, a poesia contemporânea é um ato político que contesta e discute os espaços ocupados pelas minorias. A produção poética, das escritoras brasileiras contemporâneas, não é a poesia de um eu, mas dos muitos, sobretudo, dos excluídos; é um agenciamento de multiplicidades, as quais “só podem ser definidas pelo fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou de desterritorialização” (DELUZE; GUATTARI, 1995, p. 25).

Dessa forma, as poetas realizam, através de seus textos, movimentos de desterritorialização e reterritorialização (DELUZE; GUATTARI, 1995) do eu poético, tendo em vista que este eu não se relaciona apenas com o uno, pois é ressignificado e reinserido para além da zona de estratificação, indo ao encontro do outro, do diferente, a partir da alteridade. Diante disso, gostaríamos de pensar a poesia contemporânea como um lugar de confluência de muitas subjetividades, sendo constituída por um processo de intersubjetividade, ao consideramos que a dicção poética é um encontro de muitos ‘eus’, do eu e do nós, do eu e do ele, do eu e dos outros, nesse sentido, o eu dar lugar ao ele, como veremos na escrita poética de Cora Coralina, Ana Cristina César, Alice Ruiz, Josely Vianna e Marília Garcia.

Diante disto, pretendemos investigar a poesia de autoria feminina, a fim de dar visibilidade à literatura feita por mulheres. Ademais, também é nosso intuito notabilizar o estudo do texto poético, tendo em vista que, no contexto das produções científicas, a poesia é um gênero postergado pela Academia. Para tanto, pretendemos estudar a poesia das escritoras supracitadas, a fim de obtermos um panorama mais abrangente acerca da produção literária contemporânea de autoria feminina no que diz respeito aos movimentos do eu poético nessas produções.

Desta maneira, nosso objetivo geral é investigar como a autoficção e a memória estão circunscritas na poesia de escritoras brasileiras contemporâneas; e, nossos objetivos específicos se delimitam em: apresentar como a escrita da mulher tem se situado na literatura e na sociedade; dar maior visibilidade à escrita literária das mulheres que estão fora do cânone; evidenciar os (des)caminhos da experiência biográfica ficcionalizada na composição do texto poético, os movimentos para fora do eu; discutir como a memória atrela à autoficção contribui para a produção poética.

Sendo assim, Cora Coralina puxa o fio que conduz este estudo, pois, a partir de sua poesia, percebe-se que o eu poético, mesmo dotado ainda de uma subjetividade, já aponta os movimentos para fora desse eu que há de se espraiar na poesia contemporânea. Concomitante a esta abordagem, emparelha-se a poesia das demais poetas, cujas produções literárias hão de contrapor ainda mais a ideia de um eu cercado de si mesmo, de uma identidade, de uma profissão, de uma família etc.

É por meio da relação intersubjetiva que a memória vai sendo agenciada na poesia dessas escritoras, pois, como afirma Halbwachs (2006, p. 30), “jamais estamos sós. […] porque sempre levamos conosco e em nós certa quantidade de pessoas”. Isto posto, percebemos que, na poesia das escritoras que compõem o corpus de análise deste trabalho, a memória “guarda do passado apenas o que lhe possa ser útil para criar um elo entre o presente e o passado” (SEIXAS, 2004, p. 40). Conforme Halbwachs (2006, p. 32), “a algumas lembranças reais se junta uma compacta massa de lembranças fictícias”, e é desse compacto de lembranças que se caracteriza a memória na escrita das poetas mencionadas.

Dito isto, o problema configurado por esta pesquisa delimita-se às seguintes questões: a) Como a autoficcção é agenciada na poesia brasileira contemporânea? b) Como a memória contribui para a criação autoficcional na produção literária de poetas brasileiras? c) Como se constitui o eu poético a partir da autoficcionalização e dos movimentos para fora do eu?

No tocante ao procedimento metodológico, nossa pesquisa caracteriza-se como bibliográfica, a qual é realizada através do levantamento de referências teóricas já analisadas e publicadas, como: livros, artigos científicos, teses e dissertações (FONSECA, 2002). Quanto à abordagem, caracteriza-se como qualitativa, a qual pode ser compreendida “como uma sequência de atividades, que envolve a redução dos dados, a categorização desses dados, sua interpretação e a redação do relatório” (GIL 2002, p. 133). Em relação aos objetivos, define-se como explicativa, pois busca identificar, nos textos a serem analisados, determinados fatores que contribuem para a ocorrência de certos aspectos (GIL, 2002).

Desta feita, nosso estudo se desenvolverá em três momentos: no primeiro, pretendemos problematizar a concepção do eu na poesia, a partir de uma (re)leitura da teoria e crítica literária de Julio Cortázar (1999), Alfredo Bosi (2000), Afrânio Coutinho (2008), entre outros, em contraponto aos estudos de Florencia Garramuño (2016), Silvio Mattoni (2016), Annita Costa Malufe (2011), Alfonso Berardinelli (2007), entre outros. Atrelada a essa problematização discutiremos como o eu poético foi/é estudado na poesia de Cora Coralina, a fim de problematizarmos que a sua poesia não se restringe à autobiografia, mas que também a autoficção é parte constituinte de seus textos, bem como a memória, que na velhice é atualizada em matéria para a sua produção literária. Contudo, vale ressaltar que as suas memórias não são apenas lembranças do passado, pois estas se atualizam no presente com finalidade de criação.

No segundo momento, tencionamos mostrar, a partir da poesia de Ana Cristina César e de Alice Ruiz que os movimentos para fora do eu vão se intensificando cada vez mais na poesia contemporânea, assinalando, com isso, a intersubjetividade disposta no texto dessas poetas. A autoficção é, a nosso ver, ainda mais evidente, a memória do presente é matéria contingente para essa autoficcionalização. No terceiro momento, abordaremos a poesia de Marília Garcia e Josely Vianna, evidenciando que suas produções não estão mais atreladas, necessariamente, a uma subjetividade, isto é, a um eu, pois este eu está em movimento para fora. Há, portanto, “o esvaziamento do lugar do sujeito para fazer dele um lugar hospitaleiro” (GARRAMUÑO, 2016, p. 12). O sujeito – eu – deixa de ser o centro do discurso.

Em suma, a nosso ver, a autoficção, bem como os movimentos para fora do eu, acontecem de formas diferentes na poesia das escritoras que compõe o corpus de análise deste trabalho. Ressaltamos, contudo, que o estudo empreendido acerca da poesia de Cora Coralina já é parte consolidada de nossa pesquisa. Todavia, para o desenvolvimento futuro da pesquisa ainda não se definiu a permanência das demais poetas; por ora, a análise de suas poesias como parte constituinte deste trabalho ainda é para nós matéria de indecidibilidade.

 

Referências

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BOSI, A. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das letras, 2000.

CORTÁZAR, J. Obra crítica. Vol. 2. Trad. Paulina Wacht; Ari Roitman. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. Vol. 1. Trad. Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto, Célia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34, 1995.

FONSECA, J. J. S. Metodologia da pesquisa científica. Apostila do curso de especialização em comunidades virtuais de aprendizagem – Informática educativa. Universidade Estadual do Ceará, Ceará, 2002.

GARRAMUÑO, F. A poesia contemporânea como confim. In: SCRAMIM, S.; SISCAR, M.; PUCHEU, A. (Org.). Linhas de fuga: poesia, modernidade, contemporaneidade. São Paulo: Iluminuras, 2016, p. 11-17.

GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed . São Paulo: Atlas, 2002.

HALBWACHS, M. A memória coletiva. Trad. Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006.

JUSTINO, L. B. A crítica diante do trabalho imaterial.  Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 29, v. 18, p. 1-19, 2017. Disponível em <revista.abralic.org.br/index.php/revista/article/download/402/394>  Acesso em 27 de setembro de 2017.

JUSTINO, L. B. A política da voz de Stella do Patrocínio. 2018. (Artigo a ser publicado).

KLINGER, D. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007.

MALUFE, A. C. Poéticas da imanência: Ana Cristina César e Marcos Siscar. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2011.

MARTINS, A. F. AUTOFICÇÕES: do conceito teórico à prática na literatura brasileira contemporânea. 2014. 261 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Letras, PUCRS. Porto Alegre, 2014.

MATTONI, S. Retorno ao rascunho. Anotações sobre Ponge. In: SCRAMIM, S.; SISCAR, M.; PUCHEU, A. (Org.). Linhas de fuga: poesia, modernidade, contemporaneidade. São Paulo: Iluminuras, 2016, p. 31-40.

SEIXAS, J. A. Percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais. In: BRESCIANI, S. NAXARA, M. Memória e (Res) sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Unicamp, 2004.

 Jean de Medeiros Azevedo


UMA CARTOGRAFIA DA LOUCURA: A SUBVERSÃO DO COMPORTAMENTO NORMATIVO, DA EXCENTRICIDADE E DA EXCLUSÃO DO JUDEU EM MESHUGÁ, DE JACQUES FUX

 

Jean de Medeiros Azevedo – jeanletras@bol.com.br – Mestrado

Orientação: Prof. Dr. Wanderlan da Silva Alves

 

RESUMO

 

Conceituar a loucura ou a figura do louco implica necessariamente analisar a rede de discursos envolvida nesta formulação conceitual. Para além de uma discussão teórica, construir uma cartografia sobre os loucos na literatura é pensá-los como objeto de um estudo social e cultural de um grupo marginalizado. Assim, vista como objeto social e da cultura, a loucura é constituída por uma teia discursiva que circula socialmente em relação aos efeitos de sentido do ser louco e da especificidade da loucura. De muitas maneiras diferentes, em cada época e contexto, a loucura, como fenômeno humano, tem sido conceituada e entendida. As noções e ideias acerca da normalidade e da anormalidade sofrem mudanças e servem de fundamento para expressões da loucura na literatura.

Constituído por símbolos e representações, o discurso sobre a loucura revela valores culturais, sociais e históricos de uma sociedade, estigma que ultrapassa as fronteiras da linguagem ou da conduta do indivíduo. Historicamente, em um discurso social dominante, o louco é visto no meio social como excêntrico, portador de elementos de desregramento ou comportamento transgressivo, em suma, o desvio que ameaça, que traz mal-estar para a sociedade (SILVA, 2008).

O discurso literário, por ser um espaço e fonte de representações, contradições e tensões, torna-se uma arena discursiva de construção de representações, passando a local de expressão do fenômeno da loucura e possibilitando uma compreensão do louco como identidade social, considerado como sujeito da diferença, aquele que fica fora da rotulagem social ocidental do organizado, coerente e ordeiro.

O ato literário, que não se mantém dentro das fronteiras que a sociedade impõe, ao tratar de fatos humanos, sociais e históricos, experimenta o mundo através da estética. Sendo assim, a loucura e os seus representantes se tornam corpus de relevante interesse por funcionar como uma contra-linguagem, questionando leis e valores que apontam crises e aporias na realidade sócio-histórica e conduzindo o leitor pela crítica e reflexão, indicando o desconforto social, o preconceito e mesmo a finalidade do conceito de loucura ao longo da história.

Desta forma, a loucura passa a ser o caminho para a construção de sentidos de uma determinada realidade sociocultural. O louco passa a caracterizar-se como o outro, aquele ser que, geralmente, é percebido e representado na literatura e na realidade como o excluído, desvozeado e sem lugar próprio.

Tendo como eixo de análise Meshugá: Um Romance Sobre a Loucura (2016), de Jacques Fux, esta pesquisa se propõe a desenvolver um estudo sobre a temática da loucura nesta obra da literatura contemporânea brasileira. Jacques Fux, por meio de sua escrita, acaba desvelando aspectos particulares da construção da loucura associada historicamente à figura do judeu, galgando novos debates, num estar-sendo-feito que escapa às verdades incontestáveis de nossa época.

Em Meshugá, cujo termo significa “louco” ou a “loucura dos loucos” em hebraico, a narrativa cria imagens de personagens que, embora de países e épocas diferentes e vivendo suas experiências em espaços diversos, sejam eles, domésticos, acadêmicos, políticos, expõem na narrativa literária os conflitos causados pela instabilidade emocional vivenciada sob a forma da loucura suposta em sua condição judaica. Mineiro de Belo Horizonte, o autor, judeu, assim como seu narrador, cria seus personagens explorando suas memórias, fazendo uso de diversas vozes, deixando a cargo de quem lê a responsabilidade de decifrar as referências. Explora temas de caráter subjetivo, em que as múltiplas vozes narrativas apresentam prismas dos pontos de vista.

Uma outra marca de sua escrita é a presença da terceira pessoa, que esconde um narrador em primeira pessoa e um olhar sobre o outro culturalmente afastado. A escrita de si e a escrita do outro e suas formas de comunicações são recursos constitutivos de sua narrativa, já que, por vezes, o narrador apresenta vários traços da biografia do autor e demonstra interesse em figuras marginais da sociedade. O narrador em Meshugá ocupa-se em relatar e (re)apresentar outridades, neste caso, o judeu (louco), articulando uma relação entre o escritor e o outro, mas também o escritor judeu como o outro.

Em Meshugá, o narrador quer desvelar o tema da loucura judaica por acreditar que a neurose e a loucura do judaísmo, na verdade, não são nada mais do que construções discursivas disseminadas historicamente. Alternando capítulos narrativos que reinventam a biografia de judeus reais e capítulos ensaísticos sobre teorias pseudocientíficas e antissemitas populares de diversas épocas, que afirmavam que os judeus seriam mais propensos a doenças mentais que outros povos, o narrador reconta irônica e sarcasticamente a história de personalidades judaicas aventurando-se o tempo todo em percursos que não delimitam o que é real e o que é ficcional, nem o que é, de fato, loucura ou drama da vida.

Esta escrita revela um ponto de vista que demonstra querer não se envolver com as vivências de Sarah Kofman, a influente filósofa e escritora que não conseguiu lidar com seus conflitos de pertencimento a origem judaica; com Otto Weininger, e sua saga de não aceitação de si próprio culminando no fim precoce de sua vida, por ser homossexual e judeu; com Daniel Burros, o judeu membro fundador do Partido Nazista Americano e membro da Ku Kalux Klan; ou Ron Jeremy ator de filmes pornôs que, embora fosse cultuado e louvado pelos seus atributos, figura como um indivíduo abjeto, a ser mantido longe.

Porém, o narrador se descobre diante da impossibilidade de manter distâncias entre si e a outridade do judeu louco, se entrelaçando com a história das personagens que tenta apresentar, e acaba por enlouquecer junto com eles, ou melhor, por ver-se, também, nessa condição de outro judeu.

Outro ponto da narrativa que intencionamos desnudar são os invólucros conceituais acerca do insano em suas relações com o erótico, o ódio e o ódio de si, que, juntos da loucura, acabam por construir imagens que colaboram para a formação de subjetividades não enclausuradas; são diferentes histórias que convergirão na ideia do judeu louco, o ”meshugá” que encontraram e tiveram de enfrentar em algum momento de suas vidas.

Partindo destas questões, a obra se apresenta como uma pertinente composição para se pensar e discutir questões relativas à loucura e suas convenções, para os estudos de suas representações e do louco, ora destacando um, ora destacando o outro ou mesmo fazendo uso do maquinário científico e suas verdades e descortinando o discurso social hegemônico que escolhe quem são os marginalizados e divergentes. Meshugá é uma narrativa que permite a visibilidade de ideologias e seus confrontamentos, que veem a loucura como fuga da subjetividade determinada, que sobrepujam a autoproclamada neutralidade da ciência, abrindo margem para refletir a forma como a loucura, no judaísmo, foi tratada pela ciência no decorrer dos séculos e acabou sendo considerada como algo intrínseco ao judeu.

Desta forma, entendemos que os discursos sobre a loucura e sobre seus sujeitos são reiterados socialmente, ou seja, uma doença que não afeta apenas o indivíduo no meio privado e individual, reflete no social como uma anomia, revelando o sujeito desorientado, desvinculado do padrão do grupo social dominante.

Por fim, concebemos que Meshugá constrói uma cartografia da loucura e do louco nos diferentes fragmentos que compõem a narrativa, quando trata de judeus que negaram suas raízes, família, cultura e que, negando a si mesmos, acabaram por depositar suas inquietações, raivas, perdas e exclusões em escapismos diversos como forma de tentar fugir de seus próprios vazios.

Sabendo disso, pretendemos nesta pesquisa entender a maneira como o discurso literário se apropria da figura do louco e da loucura instaurando outras discursividades, compreendendo como as diversas práticas sociais, valores culturais e experiências subjetivas aparecem como elemento de construção do texto e da narrativa.

A partir deste objetivo inicial, as discussões teóricas e práticas sobre a obra estarão organizadas em três capítulos que organizam e sistematizam o trabalho para chegarmos aos nossos objetivos subjacentes.

No capítulo 1, para demonstrar que Meshugá problematiza o pertencimento desconstruindo hierarquias através de sua estética caracterizada por fronteiras diluídas e de natureza híbrida, possibilitando efeitos de sentido que interessam pela problematização a respeito de questões existenciais e conflitos sociais, faremos uso do conceito de “realidadeficção”, de Ludmer (2010). Este conceito contribui para pensar como a obra “fabrica um presente” num regime de visibilidade midiática onde os meios de comunicação visual redefinem o papel da literatura e da leitura. Por exemplo, Meshugá como escritura da realidade atual reinventa o passado, cujo sentido se dá sem metáforas, através de biografias que dão um testemunho como “prova do presente” em oposição ao “registro realista do que passou”. Utilizaremos também o conceito de “arte inespecífica”, de Garramuño (2014) para pensar a construção da narrativa através do cruzamento de gêneros como o relato histórico, a biografia e o ensaio, criando uma estrutura de “romance sobre a loucura” de maneira não convencional, o que motiva uma multiplicidade de sentidos e interpretações possíveis, ocupando novos lugares, tanto do ponto de vista estético quanto discursivo, e possibilitando um sem-número de interpretações e conteúdos num diálogo que afeta o espectador, transformando-o em coautor ao se apropriar, retransmitir e reconstruir a obra no processo artístico a partir de provocações do autor. Também traremos o conceito de “formas corais”, de Sussekind (2013), para pensar acerca da ideia de que o tensionamento entre gêneros diversos possibilitam que da voz do autor, do narrador, das personagens emerja uma literatura múltipla e indefinível, que questiona ao mesmo tempo a história e a literatura.

No capítulo 2, para entender como o fazer narrativo de Meshugá critica o institucional legitimado ao recontar a História de seus personagens, faremos uso do conceito de “metaficção historiográfica”, de Hutcheon (1991). Este conceito, segundo a autora, é uma estratégia narrativa que, através da apropriação de fatos e/ou personagens históricos, traz de forma simultânea uma autorreflexidade meditativa junto a uma reflexão crítica do fato histórico problematizado na ficção. Sendo assim, entendemos que este é um caminho para que possamos observar como esta escolha narratológica corrobora o processo de compreensão da forma como as figuras do louco e da loucura estabelecem diálogos e, assim, relevam como a sociedade os vê e como ela se desenvolve na narrativa.

Este percurso teórico se torna essencial para compreensão do projeto narratológico dessa narrativa, pois Fux subverte as biografias dos personagens substituindo a visão “incensurável” e legitimada de cada um deles (filósofa, enxadrista, cineasta, matemático) por uma visão que revela o “louco” em cada celebridade (gay, suicida, antissemita), trazendo um processo de desnaturalização destes comportamentos desviantes que se orientam fora do institucionalizado, o que provoca um tensionamento da norma, que reage geralmente com formas de repressão violentas, elementos que o autor utiliza para criticar os princípios de organização e classificação do conhecimento e, em consequência, dos indivíduos, no meio social.

Finalmente, o capítulo 3 pretende mobilizar os conceitos discutidos nos dois primeiros capítulos, para mostrar como eles se mobilizam e se aplicam na obra e potencializam a reflexão que Meshugá realiza através de uma construção estético-narrativa que possibilita que personagens excêntricos se apropriem do discurso histórico para provocar uma reflexão acerca dos processos de naturalização dos discursos que normalizam e normatizam os seus corpos e sua vida social.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura contemporânea. Literatura brasileira. Loucura. Judeu. Jacques Fux.

 

REFERÊNCIAS

FUX, Jacques. Meshugá: um romance sobre a loucura. Rio de Janeiro, José Olympio, 2016.

GARRAMUÑO, Florencia. Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

LUDMER, Josefina. Las Literaturas pós-autônomas. Sopro, Desterro, v. 20, p.1-4, jan. 2010.

SILVA, Gislene Maria Barral Lima Felipe da. Olhando sobre o muro: representações de loucos na literatura brasileira contemporânea. 2008. 219 f. Tese (Doutorado em Literatura e Práticas Sociais) – Universidade de Brasília, Brasília, 2008.

SUSSEKIND, Flora. Objetos verbais não-identificados. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 21 set. 2013. Prosa & Verso. Disponível em: < http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2013/09/21/objetos-verbais- nao-identificados-um-ensaio-de-flora-sussekind-510390.asp>. Acesso em: 20 set. 2018.

Joseane dos Santos Costa


ECOS DA NEGRITUDE: MULHER E MATERNIDADE NA LITERATURA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA

Joseane dos Santos Costa (Mestranda/UEPB/PPGLI) zeane.jo@hotmail.com

Profª Drª Rosilda Alves Bezerra (Orientadora/UEPB/PPGLI) Rosildaalvesuepb@yahoo.com.br

 

INTRODUÇÃO

 

No contexto dos estudos acerca da literatura africana, muitas vezes nos deparamos com a realidade cultural de vários povos, através de situações que nos fazem pensar o quanto existe verossimilhança entre ficção e realidade. São muitos os estereótipos que circundam as mulheres em todo o mundo. Na Índia, por exemplo, elas dificilmente podem sair de casa sem uma companhia masculina, sem alguém para protegê-las. No Brasil imperial a mulher era tratada como um bibelô, um ser para ser protegido e mimado, mas a quem não deveriam se levar em consideração as suas ideias. Para Nascimento (2008, p. 21), a mulher no Brasil “passa a ter certa importância na ordem burguesa porque é ela que gera e educa os filhos que serão os cidadãos do futuro. Portanto, a grande missão da mulher era casar e ter filhos. Por este motivo, elas se tornam alvo de uma política sexual que visa controlar o seu comportamento e sua vida”. Ou seja, a mulher deve ser valorizada por sua condição de maternidade. Por essa razão, buscamos caminhos eficazes, que propiciem, uma discussão acerca das relações entre literatura africana /afro-brasileira e maternidade. Acreditamos que, para tanto é preciso refletir sobre os vários fatores inerentes ao processo de construção de identidade do ser mãe, dentre os quais, destacamos a forte influência do discurso patriarcal nas culturas africanas, o lugar de fala subalternizado da mulher negra, culminando em um silenciamento compulsório que torna ser feminino uma vítima do sistema, tendo em vista que a linguagem é um mecanismo de manutenção de poder (RIBEIRO, 2018). Movidos por estas inquietações, pretende-se, neste trabalho, analisar a representação da maternidade  na obra As alegrias da Maternidade (2017)  da escritora nigeriana Buchi Emecheta, pois a mesma nos apresenta através de suas personagens, mulheres determinadas, fortes, porém submissas ao sistema patriarcal, nos levando a compreender que em um mundo marcado por diferenças sociais, econômicas, filosóficas, o sujeito feminino é fortemente marcado pelos discursos e situações que lhes são impostas. Nesse sentido, embora se ajuste às situações e contextos distintos, entrando em discussão, assim, o que Hall (2014) denomina identidade fragmentada. Segundo ele, seria o indivíduo composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas são mais resilientes, a maternidade ao que parece é uma delas.

 

JUSTIFICATIVA

 

Conforme revelado no título do projeto em questão, consideramos a temática da maternidade vivenciada pela mulher nas sociedades africanas, como um tema concomitantemente antiquíssimo e contemporâneo, presente na humanidade desde os seus primórdios e deveras não muito diferente da realidade brasileira; e, mais do que discutir esta temática, pretendemos situar a literatura como um lugar de resistência da mulher, que funciona como uma forma de sua voz se fazer ouvir: eis a relevância social do problema a ser investigado. Em se tratando de motivações pessoais, o interesse por essa temática me foi despertado ainda durante a minha infância e adolescência, quando alguns colegas, principalmente as meninas diziam se envergonhar de serem negras e afirmavam que se tivessem oportunidade escolheriam ter nascido brancas, assim como a percepção dos problemas enfrentados por meus pais, ambos negros, sem ter tido o direito à educação. Tais experiências, aliadas à leitura de contos e romances que tratavam de questões de identidade cultural, bem como de aspectos da tradição histórico-cultural dos negros no Brasil, avivaram-me o interesse de estudar um pouco mais profundamente a temática em questão.

 

OBJETIVOS

 

Desta maneira, analisaremos o romance e o conto supracitado, considerando a leitura literária um instrumento favorável para o rompimento de estereótipos que circundam a mulher negra africana e afro-brasileira. Incitamos assim, pesquisas voltadas para a literatura africana, enfocando-se nas contribuições que esta pode oferecer no levante à abordagem de questões raciais e culturais. Promover, ainda, o estudo e discussão da literatura/cultura africana e afro-brasileira (conforme Lei Federal 10.639) enquanto um espaço importante para trocas interculturais; nesse sentido, promoveremos uma reflexão acerca das competências socioculturais através da leitura das referidas obras.

 

METODOLOGIA

 

Esta investigação trata-se de uma pesquisa de cunho bibliográfico e interpretativista, alocada no paradigma das pesquisas descritivistas (GIL, 2008), tendo como objeto de estudo a obra As alegrias da Maternidade de Buchi Emecheta e o conto Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos” de Conceição Evaristo. O desenvolvimento desta pesquisa se desenvolverá em etapas, das quais no primeiro capítulo: estudaremos a maternidade e imposição: a importância do ser mãe na cultura nigeriana. Logo em seguida, em um segundo capítulo: Buchi Emecheta e Conceição Evaristo: maternidade negra e violência em discussão, apresentamos reflexões acerca dos possíveis caminhos para uma construção da identidade negra, a partir da leitura das obras em estudo. E por fim, abordaremos a representação da personagem matriarca no romance “As alegrias da maternidade”, levando em consideração os pressupostos teóricos apresentados, bem como as representações literárias, tendo como título: Maternidade uma relação entre mães e filhos: uma análise da personagem protagonista Nhu Ego.

 

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

 

Assim sendo, na sociedade nigeriana, onde várias religiões coexistem, devido as diferenças regionais e étnicas, duas se sobressaem, saber: o igbo e o iorubá. De uma forma geral a maioria dessas religiões tendem a negar, à mulher, um espaço de igualdade em relação ao homem, desta maneira, escritoras nigerianas encontraram na literatura, uma saída para suas vozes serem ouvidas e estão conseguindo denunciar o processo de marginalização pelo qual passam – infelizmente, até os dias de hoje. Enquanto no Brasil, além do problema da subordinação das mulheres em relação ao homem, as autoras de literatura afro-brasileira enfrentam um racismo estrutural, pois em nosso país vivemos o mito da democracia racial, vendemos para o exterior um estereótipo de país que ama o seu povo miscigenado, que por consequência respeita e abarca todas as culturas, religiões e costumes, mas na verdade, o que predomina aqui é um esquecimento estratégico por parte das grandes mídias, e da burguesia que por agregarem valores negativos a tudo o que se diferencia do modelo branco, europeu, termina por contribuir pra aumentar o abismo social vivenciado pelos negros, e consequentemente a raça se torna um problema a mais na luta das mulheres por sua independência. Diante disso, situamos a escritora nigeriana Chinua Achebe e a brasileira Conceição Evaristo, como porta vozes das mulheres de seus respectivos países, diante do silenciamento que lhes foi condicionado. Temos, pois, como pergunta norteadora de nossa pesquisa: Como o romance “As alegrias da Maternidade”, da escritora nigeriana Buchi Emecheta, e o conto “Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos” da escritora Conceição Evaristo pode contribuir para o rompimento de estereótipos que circundam a cultura e literatura africana e afro-brasileira? Teremos como embasamento teórico, discussões sobre as identidades fragmentadas (BAUMAN, 2005) bem como as identidades no contexto pós-colonialista (HALL, 2001), o encarceramento e o lugar de fala da mulher negra (RIBEIRO, 2018), dentre outros.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Esta pesquisa será desenvolvida de forma que do início até o último mês de vigência, procederemos às pesquisas bibliográficas dos fundamentos teóricos que sustentam as reflexões a respeito da problemática em questão. Pretendemos constatar assim de qual maneira a literatura africana influencia na construção das identidades de diferentes sujeitos, sobretudo no que se refere a mulheres negras que buscam reconhecimento na sociedade na qual estão situadas.

 

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio. O que é: racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento,2018.

BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

BORGES, Juliana. O que é: encarceramento em massa? Belo Horizonte: Letramento, 2018. (Coleção Feminismos Plurais).

BERTH, Joice. O que é empoderamento. Belo Horizonte: Editora Letramentos, 2018. (Coleção Feminismos Plurais).

CARVALHAL, Tânia. Literatura comparada. 4. ed. São Paulo: Ática, 2006.

DAVIS, Angela. Mulheres, cultura e política. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2017.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016.

DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2018.

EMECHETA, Buchi. As alegrias da maternidade. Porto Alegre: Dubliense, 2017.

EVARISTO, Conceição. Maria. Olhos d´água. Rio de Janeiro: Pallas, 2016.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução Renato da Silveira. EDUFBA, 2008.

GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2008.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2014.

NASCIMENTO, Uelba Alexandre do. O Doce Veneno da Noite: prostituição em Campina Grande (1930-1950). Campina Grande: EDUFCG, 2008.

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. Trad. Ângela M.S. Corrêa. São Paulo: Ed. Contexto, 2008.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala. Belo Horizonte: Editora Letramentos, 2017. (Coleção Feminismos Plurais).

SANTOS, Lígia Pereira dos. Mulher e violência: histórias do corpo negado. Campina Grande: EDUEP, 2008.

SOUZA, F. Z. D. Dissimular para sobreviver: estratégias de resistências. Revista Abril. Baixada Fluminense, v. 5, n. 10, 2013.

Lays Honorio Teixeira


“A CARA DO POVO DO JEITO QUE ELA É”: O NACIONAL-POPULAR NA
PEÇA PARAIBÊ-A-BA, DE PAULO PONTES (1967/1968)

Lays Honorio Teixeira
Orientador: Dr. Diógenes André Vieira Maciel

[INTRODUÇÃO] Paulo Pontes (1940/1976) foi um teatrólogo campinense que atuou
no cenário regional e nacional, notadamente entre as décadas de 1960 e 1970, em meio
ao contexto histórico e político da ditadura civil-militar. Essa pesquisa dá continuidade
a um projeto de trazer visibilidade para o autor em sua terra natal, iniciado em um
trabalho de conclusão de curso (TEIXEIRA, 2016), em que se discutiu como o
teatrólogo tece críticas ao regime civil-militar, à situação social do brasileiro e ao, assim
chamado, “milagre econômico”, do governo Médici, através da peça Dr. Fausto da
Silva.
[CORPUS DA PESQUISA] Na pesquisa atual, nos propomos a analisar-interpretar o
texto dramatúrgico Paraí-bê-a-bá, estreado nos palcos no Rio de Janeiro e, depois,
apresentado na Paraíba, em inícios do ano de 1968, com o grupo do Teatro de Arena da
Paraíba, sob direção de Elpídio Navarro e Rubens Teixeira. Neste texto se faz um
resgate histórico da música, da poesia, da economia, da literatura, de episódios
marcantes da história do estado e de personalidades locais ao reunir esses dados em seu
enredo. Na peça, estão presentes, através dos seus textos (ou são mencionados como
personagens), os escritores José Américo de Almeida, Oscar de Castro, José Lins do
Rego, o cordelista Leandro Gomes de Barros, o intelectual Horácio de Almeida, o padre
Francisco Pereira,os poetas Manoel José de Lima e Augusto dos Anjos, os cantores Luiz
Gonzaga e Jackson do Pandeiro, o compositor João do Vale, e os políticos João
Agripino Filho e João Pessoa além de Euclides da Cunha. Também aparecem
pronunciamentos políticos e dados econômicos. Sua forma de escrita tem raízes no
rádio e no jornal, áreas nas quais Paulo Pontes atuava antes do teatro e onde iniciou seu
contato com o público. Essas vivências em trabalhos anteriores fizeram com que suas
peças apresentassem a principal característica de colocar o povo no palco. Em sua
maioria, seus personagens constituem representações do real: são problemas, situações,
diálogos e conflitos que, quando não transcritos integralmente, tem inspiração em
situações que realmente ocorreram.
[OBJETIVOS] Propomos uma discussão com o objetivo de problematizar como as
práticas culturais e sociais presentes na peça Parai-bê-a-bá constroem representações
do paraibano naquele contexto histórico e estético (1967/1968). Para tanto, procuramos
atingir, ainda, os seguintes objetivos específicos: (a) problematizar como a falta de
individualidade dos personagens constitui uma reflexão em torno da passagem do plano
individual para o social; (b) identificar as concepções do nacional-popular na peça,
enquanto um projeto estético-político da cena nacional, através da busca pela
aproximação do público com o teatro, seja como objeto da representação, seja como
plateia; (c) analisar o discurso representativo do homem paraibano no prefácio da peça e
em textos jornalísticos locais, tendo em vista a possibilidade de se construir a história
desse espetáculo. Assim, o objetivo geral procura problematizar como a peça Parai-bê-
a-bá, escrita e encenada durante o período da ditadura civil-militar, constrói possíveis
representações do homem paraibano, levando em consideração que não há um
distanciamento entre o texto e o contexto no qual está inserido. Para tanto, elencamos os
objetivos para responder às seguintes questões-problema: “De que maneira Paulo
Pontes consegue colocar o povo no palco?”, “Que elementos ele elencou para construir
essa representação?”, “Que características aparecem na peça com o objetivo de causar
identificação no público?” – entre outras que poderão surgir no decorrer da pesquisa
com o objetivo de problematizar como essa representação é feita.
[PROCEDIMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS] Pontes, ao problematizar a
necessidade de uma peça sobre a Paraíba, entendendo a distância que havia entre o
público e o teatro, elege o homem paraibano como objeto de análise, uma vez que, para
o autor, a dicotomia entre os temas apresentados nos espetáculos e a realidade da
população era um dos fatores para a permanência dessa distância. Essa dicotomia, ainda
que não seja assim nomeada por ele, é um reflexo, de uma vertente do movimento de
popularização do teatro, conforme um projeto de atuação política do teatro brasileiro,
atrelado a intelectuais comunistas, que se afina às formulações de uma organização da
cultura nacional-popular, conforme proposta por Antonio Gramsci e adaptado ao
cenário nacional. Não se pode olvidar que a situação de representação do teatro é
efêmera, restando aos pesquisadores contar a sua história a partir do que foi
documentado. A peça é uma fonte documental e através das fontes é possível construir
uma narrativa acerca desse episódio da história local do teatro paraibano. Dessa
maneira, nossa metodologia parte da análise do texto teatral e de fontes documentais,
sendo, por isso, definida como uma pesquisa documental (BRANDÃO apud MACIEL,
2016). Brandão (2001) faz uma divisão das fontes em graus: as fontes primárias de
primeiro grau são as fontes internas, próximas ao espetáculo: nessa pesquisa a fonte
primária é a peça documental; e as fontes primárias de segundo graus são aquelas
externas ao processo de ensaio e apresentação, aqui sendo os textos jornalísticos e
historiográficos a cerca da peça. O cuidado com as fontes se deve ao contexto às quais
foram produzidas, atentando para necessidade de constituir uma história do espetáculo,
que seja analítica e crítica quanto às fontes utilizadas.
[DISCUSSÃO] O documento da peça ao qual tivemos acesso apresenta, um prefácio de
autoria de Paulo Pontes, constituindo uma parte importante da elaboração do texto, pois,
através dele, os autores passavam suas intenções sobre os textos, tecendo comentários e
observações. Com o título “Por que um espetáculo sobre a Paraíba?”, Pontes elenca dois
impasses centrais que norteiam o processo de escrita da sua peça. O primeiro deles é
uma constatação: o público não vai ao teatro. O segundo é uma indagação: como
realizar um espetáculo de teatro, com nível capaz de interessar o público, em um Estado
que não há tradição teatral? Partindo dessas premissas, Pontes detecta que há um círculo
vicioso no qual as pessoas não vão ao teatro porque o espetáculo não é bom, e o nível
do espetáculo não melhora porque não há prestígio do público. Diante dessa situação,
ele se propõe a resolvê-los, pelo menos para essa peça, ao eleger o homem paraibano
como tema central, visando criar, além de uma identificação do público com o tema
central da peça, uma representação desse homem paraibano, de modo que levasse a
plateia a refletir sobre sua condição enquanto povo. Desse modo, nossos objetivos estão
voltados a entender como o autor realizou essas possíveis representações do paraibano.
No primeiro capítulo se voltará a problematizar como a falta de individualidade dos
personagens constitui uma análise do plano individual para o social, o que ocorrerá
através da análise da técnica da colagem de textos enquanto forma de representação da
múltipla identidade paraibana. Quando Paulo Pontes se propõe a utilizar trechos de
diferentes escritores nordestinos, em sua maioria paraibanos, com o objetivo de retratar
o homem local, ele utiliza diversos personagens que não apresentam identificação no
texto, sendo referidos por “Ator 1, Ator 2”, mas que refletem nas suas práticas o povo,
sendo essa individualidade uma característica da modernidade, reflexo das relações
sociais que são percebida no teatro. Deste modo, utilizaremos a contribuição de
Raymond Williams (1992) entendendo a forma enquanto modelo de
construção/elaboração do teatro. No segundo capítulo, identificaremos as concepções do
nacional-popular na peça através da aproximação do público com o teatro, observando
como a peça e o autor estavam inseridos dentro de um projeto nacional de valorização,
modificação e identificação do teatro com o público através das questões sociais,
políticas e locais focando na representação da classe trabalhadora, normalmente pouco
visibilizada nos textos teatrais. Por fim, no terceiro capítulo, analisaremos o discurso
representativo do homem paraibano no prefácio da peça e em textos jornalísticos locais.
No prefácio da peça, o autor comenta sobre a necessidade dessa representação no
âmbito das artes, principalmente por que no estado não há um costume de frequentar o
teatro. Além de apresentar os problemas, Pontes ainda elenca as possíveis causas para
ele, sugerindo a identificação do conteúdo apresentado em cena com a plateia como
uma resposta viável a esses impasses. Utilizaremos as contribuições de Chartier (1988)
para problematizar como as práticas e representações se dão no contexto da peça. A
utilização de críticas jornalísticas nesse capítulo tem como finalidade perceber se,
através de relatos sobre a peça, o autor conseguiu alcançar seu objetivo inicial de levar o
público paraibano para o teatro. Diante disso, é necessário lembrar que ainda não há
uma pesquisa que aborde exclusivamente essa peça na nossa perspectiva: entendendo
sua importância como marco no teatro paraibano (baseado nos relatos sobre o número
de espectadores que foram assistir) e por ressaltar aquilo que o próprio autor
considerava ser o que de maior valor a Paraíba tem, que é o paraibano.

Referências

BRANDÃO. Tânia. Ora, direis ouvir estrelas: historiografia e história do teatro
brasileiro. Sala Preta, São Paulo, ano 1, v. 1, p. 199-217, 2001.
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. – Rio de
Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1988.
MACIEL, Diógenes André Vieira (Org.) Dramaturgia, teatro e outros diálogos
(inter)culturais – Campina Grande: EDUEPB, 20016.
MACIEL, Diógenes André Vieira. Ensaios do nacional-popular no teatro brasileiro
moderno. – João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2004
PONTES, Paulo. Paraí-bê-a-bá. João Pessoa: [Propan], [ca. 1968].
TEIXEIRA, L. H. Dr. Fausto da Silva e o milagre econômico: identidade,
subdesenvolvimento e escassez na obra de Paulo Pontes. Monografia. Campina Grande:
Universidade Federal de Campina Grande, 2016.
WILLIAMS, Raymond. Cultura. Tradução de Lólio L. de Oliveira. 2ª. ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1992.

Leandro Rodrigues de Souza Azevedo


REPRESENTAÇÕES DE MASCULINIDADES EM RUBEM FONSECA

Leandro Rodrigues de Souza Azevedo (PPGLI – UEPB)

Orientador: Prof. Dr. Antônio de Pádua

 

Os contos do escritor mineiro Rubem Fonseca compõem, de modo geral, um vasto campo para pesquisas, pois o autor problematiza as configurações de personagens, em especial, masculinos que se caracterizam como sujeitos agressivos. Suas narrativas são velozes e sofisticadamente cosmopolitas, cheias de violência, erotismo, irreverência. Diante disso, faz-se conveniente analisar as representações de discursos masculinos, para entendermos como se constrói as mais diversas identidades do sujeito masculino na obra de Rubem Fonseca.

Sabemos que os conceitos de gênero, na maior parte das sociedades, estão alicerçados nas características inerentes da linguagem.  Tomando como ponto de partida esta linguagem associada ao estilo de Rubem Fonseca de narrar, faz-se necessário investigarmos na sua obra as possíveis causas socioculturais e ideológicas que legitimam a construção de identidades masculinas, realizada por ações linguísticas marcadas por uma linguagem contundente, precisa e predominantemente marcadas pela oralidade.

O procedimento metodológico de Spitzer (1949), conforme citado por Araújo (2013, p. 105) possibilita realizar uma análise estilística e psicológica que elastece o conceito de estilo de um determinado escritor e enfoca em algum procedimento linguístico que chame a atenção do estilista, sobretudo pela recorrência, e o explora insistentemente para que, posteriormente, extrapole-o em direção a algo mais global. Pensando nesse procedimento de Spitzer (idem) surge a inquietação: de que maneira a recorrência de elementos linguístico-estilísticas como um estilo narrativo direto, cru, ausente de adjetivos e descrições e presença de diálogos marcados pelo de uso palavrões proferidos por indivíduos masculinos na pele de advogados, escritores ou detetives, e marcada pela violência em suas mais diversas manifestações presentes na contística de Rubem Fonseca contribui para as construções/representações das identidades masculinas?

Nessa perspectiva, nossa pesquisa visa analisar a obra de José Rubem Fonseca, escritor mineiro nascido em 1925 e autor de uma obra extensa e coerente quanto ao estilo e à temática, a fim de encontrar, por meio da análise estilística, o princípio unificador da contística de Rubem Fonseca, o qual estabelece a construção das personagens masculinas. Pretendemos investigar as relações sociais que encontramos na contística fonsequiana, ou seja, a proposta deste estudo se intenta em analisar o gênero masculino, nos contos de Rubem Fonseca, não exclusivamente como diferença sexual, biológica, mas também como “representação de cada indivíduo em termos de uma relação social” (ZANFORLIN apud LAURETIS, 1994.p. 221) que se modifica de acordo com cada época e a cada posição social que os personagens ocupam.

Deste modo, temos como objetivo geral refletir sobre as ocorrências linguístico-estilísticas na contística de Rubem Fonseca de maneira a estabelecermos o sentido desse estilo nas representações de discursos masculinos, para entendermos como se constrói as identidades dos sujeitos masculinos na obra do escritor mineiro.

As nossas análises dos contos selecionados terá como base os estudos de gênero e sexualidades, no tocante as masculinidades. A partir dos resultados obtidos, esta pesquisa pretende contribuir para a compreensão da prosa fonsequiana como efeito de práticas culturais dos personagens ali retratados, além de compreendermos como a narrativa de Rubem Fonseca transporta a construções identitárias, sobretudo de gênero, etnia e classe social desses mesmos personagens masculinos.

Nossos aportes teórico-críticos principais – mas não os únicos – na pesquisa se darão por meio de autores que possam auxiliar na análise e interpretação dos contos, além de apropriar-nos de conceitos chaves para o desenvolvimento da pesquisa, a exemplo da crítica estilística que, apesar de voltar-se quase que exclusivamente à poesia, está presente e deve ser estuda na prosa, observando, sobretudo o que nos apresenta os seus precursores: Léo Spitzer (1949) e Damaso Alonso; além das teorias de Silveira Bueno (1964) e José Lemos Monteiro (2014), respectivamente. Para nossa reflexão teórica acerca das análises de construções e identidades masculinas, utilizaremos as concepções teóricas e as discussões sobre a masculinidade de Sócrates Nolasco (1993). Utilizaremos ainda das ideias/teorias de Bourdieu (1998), as quais fazem crer que as influências de um mundo cosmopolita, violento e brutal também são responsáveis pela constituição do sujeito masculino.

Nossa pesquisa, no momento, está no estágio de leituras e releituras da obra selecionada com o intuito de obtermos uma visão crítica e reflexiva dos contos e compreendermos o universo das personagens. Isto em concomitância ao cumprimento de créditos correspondentes às disciplinas obrigatórias e optativas do programa.  Está sendo feito também um levantamento de referências teóricas e críticas a fim de que possamos concluir o primeiro capítulo (teórico) da dissertação ao final do semestre 2018.2 para avaliação, revisão e reescritas. Pretendemos concluir a dissertação no segundo período de 2019, com três capítulos, sendo que os dois últimos serão ainda discutidos de que maneira poderemos estruturá-los.

 

Referências

BUENO, Silveira. Estilística Brasileira: O estilo e sua técnica. São Paulo: Saraiva, 1964.

NOLASCO, Sócrates. O mito da masculinidade. Rio de Janeiro: Rocco , 1993.

PIERRE, Bourdie. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,2010.

SILVA, Deonísio. Rubem Fonseca: proibido e consagrado. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996.

ZANFORLIN, Sofia. Rupturas possíveis: representação e cotidiano na série os assumidos (queer as folk). São Paulo: Annablume, 2005.

Leiliane Thaís Pereira de Lima


A SIMBOLOGIA DO JASMINEIRO EM NARRATIVAS CONDEANAS: OS EFEITOS
SINESTÉSICOS

LIMA, Leiliane Thaís Pereira de Lima¹; JUSTINO, Luciano Barbosa²
1 Discente do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade, na Universidade Estadual da Paraíba;
2 Docente do Programa de Pós Graduação em Literatura e Interculturalidade, na Universidade Estadual da Paraíba.

RESUMO
Este trabalho tem como objetivo analisar a construção simbólica do jasmineiro, e seus efeitos sinestésicos, nas narrativas
de Terra de Caruaru (2011) e Santa Rita (1977), de José Condé. De caráter bibliográfico e qualitativo, esta pesquisa
busca realizar um levantamento teórico das funções exercidas pelo elemento jasmineiro nas obras condeanas citadas
acima, para compreender sua construção simbólica dentro das narrativas deste autor em específico, tendo em vista sua
relação pessoal com a presença desta planta em sua infância e a ressignificação que lhe é dada em suas narrativas.
Desde a escolha da palavra, até a relação simbólica que se estabelece, a escrita condeana se mostra atenta à presença
do jasmim, como se seu cheiro fosse um sinônimo de tantas emoções, que acabam por se reconfigurar nas obras em
estudo como um novo símbolo, que se comunica com o mundo real, mas dele já não é parte unicamente representativa.
Sua interpretação também não é unívoca. As relações estabelecidas nas narrativas em análise são variadas e isso
interfere na sua construção simbólica, tornando-a complexa, ampla. Para compreender essa relação nos ancoramos em Moisés (1984), Hertel (2005), Barthes (1972), entre outros.
PALAVRAS-CHAVE: Jasmineiro; simbólico, sinestésico, Condé.

INTRODUÇÃO
O ser humano vivencia sentimentos e sensações o tempo todo. A arte explora essas sensações,
buscando ativá-las por meio de suas representações, como forma de alcançar a subjetividade do seu receptor
e atingi-lo de modo pessoal e particular. Quanto mais sensações uma expressão artística provoca, mais
próxima da subjetividade humana ela pode ficar. E se essas sensações ocorrem sinestesicamente, mais
intensa é a experiência e mais íntima é a relação que o indivíduo estabelece com a expressão artística.
A narrativa literária é uma das artes que utiliza abundantemente esse recurso. A sinestesia,
capacidade estilística de combinar a ativação de múltiplos sentidos por um mesmo elemento instigador, é uma
estratégia linguística que busca gerar no leitor a sensação física da confusão dos sentidos através do texto.
O estudo das narrativas condeanas, no tocante aos efeitos sinestésicos, volta-se para a figura do
jasmineiro. Planta com flores extremamente aromáticas, o jasmineiro está presente nas narrativas desde o
muro dos suntuosos sobrados até a janela das casas da parte mais pobre da cidade. Seu cheiro percorre e
envolve o espaço das histórias contadas, adentra as narinas e a memória dos personagens e ativa sensações
e emoções que se refletem, também, no leitor.
A recorrência do elemento jasmineiro na obra do escritor caruaruense José Condé é algo intrigante,
estando presente em ao menos oito de suas doze publicações. Segundo Oliveira (2012), a própria casa de
Condé, na época de sua infância em Caruaru, possuía um muro coberto por jasmineiros que incendiavam os
cômodos com o aroma marcante nos fins de tarde. Essa planta, seu cheiro e sua imagem se perpetuaram no
imaginário do menino Condé ao ponto de passar a habitar também seus escritos. A presença e representação
estilística do jasmineiro, bem como a funcionalidade que exerce no plano de fundo das narrativas, além de
sua profunda relação com a memória afetiva e olfativa do autor, o constituem como um elemento simbólico
da escrita condeana.
Como Hertel (2005, p.129) afirma, “cheiros nunca são meramente cheiros […] trazem consigo
significados simbólicos”. A figura do jasmineiro, sua presença constante, seu cheiro e suas funções dentro
das narrativas não o limitam à uma marca da escrita saudosa, meio sonhada e meio vivida, do autor, mas o
desvincula, em certa medida, dessa existência primeira e empírica e denota nova forma, desta vez simbólica,
sinestésica e literária, permitindo a construção de uma nova figura, agora agindo como elemento estilístico na
escrita deste sujeito autor.
Este trabalho tem como objetivo geral demonstrar os efeitos sinestésicos e simbólicos da presença
do jasmineiro nas narrativas de Terra de Caruaru (2011) e Santa Rita (1977), de José Condé. Através dos
objetivos específicos buscamos: discutir a construção simbólica do elemento jasmineiro no desenvolvimento
das narrativas condeanas; expor os efeitos sinestésicos gerados pela imagem do jasmineiro atrelada à
memória olfativa do autor, já construída, e do leitor, que se constrói em função de sua relação com a obra; e
agregar a perspectiva da discussão simbólica e sinestésica do jasmineiro à fortuna crítica do autor José
Condé.

METODOLOGIA

De caráter bibliográfico, esta pesquisa busca realizar um levantamento teórico das funções exercidas
pelo elemento jasmineiro nas obras Terra de Caruaru (2011) e Santa Rita (1977), de José Condé, no intuito
de compreender sua construção simbólica dentro das narrativas do autor, e os efeitos sinestésicos de sua
presença e utilização estilística. Não buscamos, prioritariamente, quantificar a utilização desse elemento, mas
sim analisar sua consequência e influência num dado recorte da produção literária do autor caruaruense,
situado numa ordem histórica, pessoal, temporal e social, tornando esta pesquisa de caráter também
qualitativo.
Para realização deste trabalho, analisamos, num primeiro momento, as obras literárias, para obter a
primeira impressão sinestésica da presença do jasmineiro, observando e atribuindo sentidos à sua simbologia.
Procederemos, pois, a um levantamento do aporte teórico das discussões e conceitos simbólicos e
sinestésicos na literatura e nas artes, analisando a construção de novos símbolos e seu processo de
ressignificação, bem como os efeitos da utilização da sinestesia na construção de uma relação de intimidade
com, e influência sobre, o leitor. A partir de então, revisitaremos as obras condeanas à luz dessa nova teoria,
construindo uma análise e discussão que espera-se partir da sensação primeira, nua e crua, advinda da leitura
inicial, portanto mais subjetiva e ligada ao sinestésico em si, à uma análise mais sistemática da construção
desses efeitos e da simbologia que se constrói para o elemento jasmineiro, na obra de José Condé em
específico. Essas análises serão realizadas a partir da leitura individual dos textos, e discussão das
interpretações e conclusões, juntamente com a professora orientadora.
Os efeitos sinestésicos despertados pelo jasmineiro, nas obras em análise, parecem exercer certa
influência sobre a relação de permanência – quando não de recorrência – dessa planta, de seu cheiro e
imagem, no pano de fundo da ação narrativa. Logo, efeitos sinestésicos e simbólicos parecem agir em
consonância com a construção da figura do jasmim, ressignificada nas narrativas, lidas separadamente ou
como conjunto de obras de um autor.
Esta análise parte do pressuposto de que os efeitos simbólicos gerados pela descrição desse
elemento, tanto imagem, quanto cheiro, partem da própria relação subjetiva do autor com a memória da
infância, que se mescla com o símbolo de pureza e santidade que já perpassam a imagem simbólica desta
flor, moldando-a, enquanto recurso literário, e dando-lhe novas atribuições e sentidos, nova força simbólica
dentro do contexto, tanto de uma obra específica, quanto do conjunto de escritos de Condé. Hipótese esta
que pretendemos confirmar, ou refutar, diante da análise realizada.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A construção do efeito sinestésico perpassa a discussão da relação significante e significado, bem
como a construção de sentidos que o jasmineiro adquire em cada contexto narrativo, de sua funcionalidade
no espaço, no tempo e no discurso literário. Partimos, pois, de uma análise da palavra, perpassando suas
relações sinestésicas, analisando a construção discursiva em prol da relação sensorial, os efeitos e a força
das funções exercidas pelo elemento jasmineiro em cada situação narrativa, para que possamos
compreender e justificar, por fim, sua construção enquanto elemento simbólico.
Massaud Moisés (1984, p. 26), em sua obra A análise literária, publicada em primeira edição em 1969,
ressalta a importância da análise do significante para um estudo literário, mas alerta que o estudo desse
significante é inútil se não levar o estudioso a uma reflexão sobre o seu significado. Desse modo, a análise
não deve ser da palavra pela palavra, mas da palavra como intermediário entre o leitor e um conteúdo de
ideias, sentimentos e emoções que nela se coagulam. Ou, melhor seria dizer, a análise da palavra como
veículo de comunicação, transposição e relação entre o escritor e o público.
Assim entendida, a palavra surge como um ícone, isto é, como objeto gráfico pleno de sentidos,
variável dentro de uma escala complexa de valor. E é enquanto ícone, enquanto expressão de significados
vários, que a palavra deve ser analisada. Sendo assim, essa discussão deve buscar se basear em uma
compreensão maior de seu significado, bem como de sua relação com as demais palavras do discurso e de
sua influência no dito. Seria possível supor que o estudioso voltasse a sua análise apenas para as palavras
de significação própria, mas tratando-se de um texto literário, palavras de relação podem ter mais importância
que as palavras de significação, dependendo de como o autor as utiliza como artifício estilístico e daquilo que
o texto exige como leitura. Por ser um elemento que desperta, primeiro, a sensação olfativa, e por ser o cheiro
muitas vezes descrito a partir de comparações, palavras de relação podem ter uma grande carga significativa
para esta análise.
A palavra tem suma importância na construção dos efeitos sinestésicos na literatura, tendo em vista que é o
primeiro estímulo sensorial – através da visão da grafia – que desperta a imagem – referencial de mundo –
do leitor. Através da construção linguística realizada em torno dessa palavra/imagem é que se permite ativar
outros sentidos – audição, tato, paladar e/ou olfato – causando o efeito sinestésico, a mistura e confusão de
sensações.
Para a construção de um efeito sinestésico, no caso do jasmineiro em específico, é preciso ligar imagem
visual do grafema ao seu cheiro, gerando o efeito desse cheiro sobre a personagem e o leitor. Na literatura
condeana percebemos que a imagem do jasmineiro está intimamente atrelada à noção de infância, de
segurança do lar paterno, da sua terra natal. É uma imagem e um cheiro de saudade. Essa relação íntima do
autor com a imagem simbólica do elemento é o que vai contribuir de forma particular – por meio da recorrência
e das relações estabelecidas com o jasmineiro dentro das narrativas, de suas funções e dos efeitos sobre ele
criados – para a construção simbólica e a força das sensações sinestésicas desse recurso.
Discutindo sobre O efeito do real (1972, p. 37), Roland Barthes chama a atenção do leitor para os detalhes
inúteis da narrativa, destacando que, por vezes pequenos detalhes descritos ao acaso são na verdade,
preditivos, pois o sintagma é sempre referencial. É essa referência que corrobora para a construção de um
efeito verossímil, gerando a identificação do leitor com o ambiente, personagens ou narrador. Para que a
construção simbólica de um elemento funcione literariamente é necessário que o leitor partilhe ou adquira,
através da leitura, a imagem poética ou imagem simbólica deste elemento, seja ele visual, olfativo ou de
qualquer outro valor sensorial.
Essa relação é construída à medida que o jasmineiro passa a integrar o pano de fundo da ação nas narrativas
analisadas neste trabalho. Ele está sempre presente no ambiente em que as cenas principais se desenvolvem
e sua presença é sentida, sinestesicamente, pelo leitor. A medida em que a leitura ocorre, e o leitor adentra
o ambiente narrativo, ele adentra também nessa relação com o jasmineiro, relação essa estabelecida, em
primeiro momento, pelo próprio autor, que acaba por transformar esse elemento em um símbolo, dando-lhe
um significado além do que é visível à margem de uma interpretação rasa de sua presença.
Compreender como a construção do jasmineiro afeta a narrativa, interfere na escrita do autor e na relação do
leitor com tais obras, nos permite considerar e avaliar a escrita literária como um campo de afetações e
relações. O autor, que consciente ou inconscientemente, utiliza de forma recorrente um elemento de tão forte
poder sinestésico, acaba criando em sua própria escrita uma marca que funciona quase como uma assinatura
pessoal, um símbolo que só adquire esse sentido específico dentro do contexto de sua obra em particular.
Essa relação simbólica intratextual afeta, necessariamente, a relação extratextual de seus leitores. Uma
imagem real, especialmente se dotada de carga simbólica, é sempre modificada pelas relações que
estabelecemos ao longo do tempo com o objeto, pelo modo como ele nos afeta, literária ou empiricamente,
pelas mudanças de sentido que o mundo real infringe a este objeto. Os jasmineiros foram para Condé uma
forte recordação de Caruaru, da casa 300 na Rua da Matriz, um cheiro de saudade da infância e dos cachorros
que possuía, os únicos amigos de um menino solitário. Para os seus leitores, os jasmineiros se tornaram um
sinônimo de saudosismo e afeição, uma recordação da infância, que não é mais a de Condé, mas a deles
mesmos. E o símbolo segue sendo ressignificado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As reflexões obtidas com esse projeto trazem ao centro das discussões teórico-acadêmicas novas
considerações sobre a sinestesia e a simbologia vistas à luz do texto literário de um autor que, a destarte da
qualidade de sua obra, foi mantido na penumbra do cânone literário brasileiro.
Desde a escolha da palavra, até a relação simbólica que se estabelece, a escrita condeana se mostra atenta
à presença do jasmim, como se seu cheiro fosse um sinônimo de tantas emoções, que acabam por se
reconfigurar nas obras em estudo como um novo símbolo, que se comunica com o mundo real, mas dele já
não é parte unicamente representativa. Sua interpretação também não é unívoca. As relações estabelecidas
nas narrativas em análise são variadas e isso interfere na sua construção simbólica, tornando-a complexa,
ampla.
A relevância de se discutir os efeitos simbólicos e sinestésicos na contemporaneidade se dá na perspectiva
de salientar a ampla rede de conexões que envolvem a relação auto-texto-leitor, que parte desde a construção
de uma história verossímil, perpassando sinestesia, simbolismo e tantos outros recursos e campos do
imaginário, até chegar a uma conexão quase materializada. A imagem do jasmineiro passa a ser
ressignificada também na vida do leitor que percebe essa relação vivenciada na(s) obra(s).

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. O efeito do real. In: GENETTE, Gérard; et all. Literatura e Semiologia: Pesquisas
Semiológicas, Petrópolis: Editora Vozes Ltda, 1972. p. 35-44.
CONDÉ, José. Terra de Caruaru. 6. ed. Posfácio de Edson Tavares. Caruaru-PE: W. D. Porto da Silva, 2011.
CONDÉ, José. Santa Rita: Histórias da cidade morta e Os dias antigos. 3. ed. Rio de Janeiro / Brasília:
Civilização Brasileira / INL, 1977.
HERTEL, Ralf. Making sense: sense perception in the British Novel of the 1980s and 1990s. Amsterdam:
Editions Rodopi B.V, 2005.
OLIVEIRA, Maria Juliana de. Terra de Caruaru no imaginário de José Condé. Caruaru, 2012. Disponível
em: http://www.fundaj.gov.br/images/stories/epepe/IV_EPEPE/t2/C2-06.pdf Acesso em: 10/06/018.
MOISÉS, Massaud. A análise literária. São Paulo: Cultrix, 7ª edição, 1984.

 

Resumos Doutorado


André Caldas Cervinskis

 

MITOPOÉTICA DE LUCILA NOGUEIRA

DOUTORANDO: André Caldas Cervinskis

ORIENTADOR: Luciano Barbosa Justino

TEORIA

Segundo Durand (apud Turchi 2001, p. 260), em sua obra As Estruturas Antropológicas do Imaginário, propõe para o imaginário, uma divisão bipartida em dois regimes: o diurno o noturno. Os dois regimes, provenientes das três posições reflexológicas, produzem, por sua vez, três estruturas que podem ser consideradas uma verdadeira fisiologia das funções do imaginário, pois tais estruturas  fixam, em outras palavras, os princípios gerais, estabelecendo os fundamentos para a identificação de cada regime. Para o regime noturno, as estruturas esquizomorfas ou heróicas; para o noturno, sintéticas ou dramáticas, e místicas ou antifrásicas. Diante da análise exposta acima, pode-se afirmar que Estocolmo é predominantemente sintético. A estrutura sintética define-se pela tendência à dialética, à concordância e à organização, tendo como princípios fundamentais a causalidade e, por símbolos, a árvore e a moeda, que sugerem crescimento, movimento, destino, eterno recomeço e dramatização perpétua, o que leva ao gênero dramático (TURCHI, 1998, p. 261). O destino não é mais uma fatalidade, mas consequências dos atos dos homens para assegurar o ciclo da vida, porém, são necessários rituais e sacrifícios (PITTA, 1995, p. 30). A teoria defendida por Durand é que toda obra de arte apresenta da bacia semântica de seu tempo, cumprindo um trajeto antropológico que nos permite determinar os mitos dominantes de um determinado período. A Mitocrítica seria então um diagnóstico de um determinado tempo, por base nos mitos dominantes em dada cultura, o que determinaria as estruturas de imagens que esse autor classifica como sendo do regime noturno (aconchego, acolhimento, feminino) e diurno (heroico, masculino, batalha). A cada regime correspondem as estruturas mística e sintética (noturno) e heroica (diurno). A mitocrítica, portato, se constutiu da análise da parte (obra de arte) para se delimitar o todo (cultura), que corresponderia o método da Mitanálise, mais complexa. Segundo Durand (2002, p. 20), a consciência mítica não parte do jogo lingüístico, mas sim dos estados de fato – naturais ou sociais – cujo sentido é necessário integrar, assimilar ainda mais e elucidar por repetida iluminação. Pode-se afirmar que a matéria-prima do mito é existencial: é a situação do indivíduo e do seu grupo no mundo que o mito tende a reforçar, ou seja, a legitimar. O mito é, simultaneamente, modo de conhecimentos e modo de informação. Nosso objetivo é realizar a Mitocrítica de Ilaiana (1997) e Imilce (2000), que, por sua vez, fazem parte da TETRALOGIA IBÉRICA, assim denominado pela autora. Escolhemos, porém, os livros citados por representarem, para nós, os mais significativos livros da autora na perspectiva da Teoria do Imaginário (Mitocrítica).

 

HIPÓTESE

No caso dessas obras, então,  o mito seria o de IMILCE, personagem mimética criada por Lucila Nogueira para dar voz às mulheres da Antiguidade. Ela seria a esposa abandonada pelo general cartaginês ANÍBAL BARCA. O poema IMILCE é desenvolvido através de mimese lírica  por meio das vozes de IMILCE, ANÍBAL BARCA, O FILHO DE ANÍBAL E A MÃE DE ANÍBAL. Desse modo, há uma subversão da autora Lucila, que cria e dá voz á personagem IMILCE, não registrada na História e que dialoga com o mito do general cartaginês ANÍBAL BARCA. Preliminarmente, que as obras IMILCE e ILAIANA apresentam características da estrutura  sintética, por reunir traços de estruturas místicas e heroicas. Consolo, aconchego e agonia da mãe-amante Imilce (representado pela figura da mãe Imilce, da Grande Mãe – Gaia, Ísis e Astarte); postura heroica no sentido de Imilce se colocar contra o Império Romano e as Guerras Púnicas, ousando dar voz à sua loucura e reivindicações da espessa e mãe abandonada (representada pelas referências ao gládio, ao sol, ao fogo). Há também aspectos semelhantes nas vozes do filho de Aníbal e da sua mãe; em relação à ILAIANA, percebemos diversas referências diretas à personagem histórica de ANÍBAL BARCA, como também ao mito da Grande mãe (Gaia), nas figuras de Isis, Astarte e Virgem Maria, imiscuídas na própria DAMA DE ELCHE (mito da região de ALICANTE, Espanha), retrabalhada pela autora especialmente em ILAIANA.

Assim, o livro Imilce (2000), na verdade um poema em 4 vozes, é um canto de tristeza e desencontro das mulheres e filhos dos soldados que vão às guerras, em todas as épocas. Fala também dos conflitos políticos que encadeiam tragédias humanas, como em todas as guerras. As personagens são o próprio Aníbal, a sua mãe, seu filho e Imilce, esposa dele. Interessante que somente os amantes têm seus nomes revelados. Como se a autora quisesse destacar mesmo a dor e o dilema das mulheres que amam e esperam a volta dos amados. As estrofes simetrizadas em torno do eixo vertical possibilitam ao leitor uma leitura dupla, pois há a possibilidade de lerem-se os versos por inteiro, como normalmente se procede, ou primeiro a sua metade esquerda e depois a metade direita.

Todo o texto, segundo Durand (1989, p. 148), contém de forma subjacente, um mito. Imilce não possui nem de forma subjacente, mas de forma emergente. Percebemos a referências às mitologias judaico-cristã (ao pé do Líbano/ os homens de púrpura/ sidônios do deserto/ Canaã/ muros de Jericó) e greco-romana (cabeleira de Vênus e Verbena – p. 48); mas há referências a outras específicas, como a ibérica, dos ciganos mesmo de épocas específicas, como a inquisição e as cruzadas: minha mãe viu fogueiras no caminho (…) e disse na loucura: inquisidores; viu soldados diferentes (…) lutando/ contra os mouros do oriente/ e disse na loucura:/ são cruzadas (NOGUEIRA, 2000).  Imilce é, então,  poesia de fogo e de luz. Várias são as passagens em que há uma referência implícita ou explícita ao fogo, ao sol, à luz: (voz de Imilce): o amor me seca os lábios: tudo ferve (p.13); meu corpo é um braseiro de perfumes, meus lábios o Etna e o Vesúvio; vem ver-me andar no fogo sobre as águas; eu desejava o mundo como um círio ardendo); (voz do filho de Aníbal): os filhos são as cinzas de um naufrágio […]; e os altares acesos na comédia dos deuses; levando em cada mão um candelabro […] era dia e era noite/ e a chama acesa; minha mãe/ viu fogueiras nos caminhos… ;… não vive sem azeite tanto fogo;… que minha mãe jogou dentro do fogo… (NOGUEIRA, 2000). O fogo de Prometeu que iluminou Atenas, não obstante a ira dos deuses do Olimpo. Na mitologia judaico-cristã, mais próxima de nossos dias, o fogo é usado para rituais de purificação: eles sucumbirão/ depois de Cristo/ hebreu/ crucificado num calvário); [..].cavalguei/ minha fantasia hebraica/na língua cananeia/ de meus pais […]; leões crucificados de Cartago (NOGUEIRA, 2000).

Desse modo, afirmamos que Imilce (2003) tem caraterísticas narrativas (portanto, também exercendo a mímesis ou verossimilhança) por contar uma história em versos. Narrativa e lirismo juntos. Nesse poema, destaca-se a sina da mulher do general cartaginês Aníbal Barca, dando também voz à sua mãe e ao seu filho. Fala do sofrimento das guerras, dá voz aos esquecidos da História.

 

REFERÊNCIAS

 

DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário (trad. Hélder Goginho). São Paulo: Martins Fontes, 2002.

NOGUEIRA, Lucila. Ilaiana. Recife: Cia. Pacífica, 1997.
_____. Imilce. Recife: Cia Pacífica, 2000.
TURCHI. Maria Zilda. Literatura e antropologia do imaginário. Brasília: UnB, 2003.

 

Antonio Almeida Rodrigues da Silva


O ENCONTRO COM O OUTRO EM ANGÚSTIA, DE GRACILIANO RAMOS

 

Antonio Almeida Rodrigues da Silva (Doutorando)

Antonio Carlos de Melo Magalhães (Orientador)

 

RESUMO

Já existe um consenso na Academia sobre a interface entre literatura e filosofia. Não sem Razão, Jacques Derrida (2014, p. 72) assinalou que a literatura está sempre aberta para outros discursos. No conteúdo dos textos literários, há sempre teses filosóficas. De modo correspondente, dizia Heidegger (2008, p.4), a filosofia como tal pode permanecer velada ou manifestar-se no mito, na poesia/literatura, nas ciências, sem que seja reconhecida como filosofia. Dominique Maingueneau (2006), por sua vez, percebe que os discursos constituintes estão inseridos em zonas de fala em meio a outras falas. A literatura, enquanto discurso constituinte, atravessa e é atravessada pela filosofia, isto é, a literatura sempre guarda o outro e, claro, o outro sempre guarda a literatura. Existe, então, como diria Leopoldo e Silva (2004, p. 12), uma “vizinhança comunicante” entre literatura e filosofia.

 

A presente pesquisa tem como objeto de estudo o romance Angústia, de Graciliano Ramos, publicado em 1936. O conceito de angústia, muito caro às filosofias da existência, está posto na obra. Luís da Silva, em um dos momentos angustiantes do existir, diz:

 

A réstia descia a parede, viajava em cima da cama, saltava no tijolo – e era por aí que se via que o tempo passava. Mas no tempo não havia horas. O relógio da sala de jantar tinha parado. Certamente fazia semanas que eu me estirava no colchão duro, longe de tudo… E o dia estava dividido em quatro partes desiguais: uma parede, uma cama estreita, alguns metros de tijolo, outra parede. Depois, a escuridão cheia de pancadas, que às vezes não se podiam contar porque batiam vários relógios simultaneamente… Eu escorregava nesses silêncios, boiava nesses silêncios como numa água pesada. Mergulhava neles, subia, descia ao fundo, voltava à superfície, tentava segurar-me a um galho. Estava um galho por cima de mim, e era-me impossível alcançá-lo. Ia mergulhar outra vez, mergulhar para sempre, fugir das bocas da treva que me queriam morder, dos braços da treva que me queriam agarrar (A, p. 272-273).

A citação mostra todo o caráter, transitório, dramático e contingente da existência humana. É um não pertencer a lugar algum. “Na angústia, se está estranho”, assinalava Martin Heidegger (2004). Estranheza significa “não se sentir em casa”, não estar familiarizado com nada. O não se sentir em casa, portanto, lança o ser humano num mundo totalmente desordenado, caótico.

 

Parto da hipótese de que todo o drama vivido por Luís da Silva está diretamente ligado à existência do outro. É pelo olhar do outro que Luís da Silva descobre, de súbito, sua condição de um ser angustiado, gerando vergonha, desejo, alienação, timidez. E é através desse olhar que ele busca um reconhecimento que, em grade medida, é quase sempre negado, pois seus possíveis passam pelo outro, o que o leva a assassinar seu rival, Julião Tavares, como uma forma de suprimir sua condição de alienado. A angústia de Luís da Silva, portanto, é a própria presença do outro, isto é, a angústia de existir pelos olhos dos outros.

 

O primeiro capítulo, “Angústia e os caminhos da crítica”, está dividido em cinco tópicos. 1. Notas em torno do romance de 30; 2. Caminho Sociológico; 3. Caminho Biográfico; 4. Caminho Psicológico; 5. Notas Críticas. Nas “notas críticas” aponto para a necessidade de se pensar Angústia para além dos chavões consagrados e repetidos pela critica. De acordo com Rui Mourão (1971), a obra romanesca de Graciliano Ramos permanece intocada “diante de uma crítica que a si mesmo se limita, ao eleger ângulos de interesses comprometidamente parciais, quando não se mostra de todo insuficiente, por uma desatualizada impostação teórica”. Diante dos limites da crítica, a singularidade da pesquisa configura-se num estudo de interface entre literatura e filosofia. O diálogo com um referencial teórico filosófico permitirá, não somente dar um salto nos estudos sobre Angústia, mas também dar o devido valor a um conceito central das filosofias da existência, a saber, o fenômeno da angústia. Em Angústia a alteridade se impõe. A presença do outro é o condicionante da angústia. Luís da Silva distingue perfeitamente a criança, o operário faminto, os namorados que desejam deitar-se e, conclui, “eles me invadiram por assim dizer violentamente” (A, p. 185). “Diante do meu rival”, referindo-se a Julião Tavares, “sentia-me estúpido. sorria, esfregava as mãos com essa covardia que a vida áspera me deu e não encontrava uma palavra para dizer. A minha linguagem é baixa, acanalhada. Às vezes sapeco palavrões obscenos” (A, p. 59). O Dasein, para usar um conceito heideggeriano, é o ser lançado, jogado…, diante do outro. O com quê a angústia se angustia já está “presente”, é a própria presença (2004, p. 141).

Qual minha perspectiva teórica? Parafraseando Otto Carpeaux (1978), vou construir uma teoria para pegar a minha vítima; vou edificá-la com pedaços de outras criações alheias; vou colher esses fragmentos, “entregando-me ao jogo livre das associações”. Como dito, Angústia se constitui a partir da relação com o outro o que, de certa forma, produz todo o clima angustiante da obra. Sendo assim, encontrei na teoria do olhar, de Jean-Paul Sartre, sistematizada na obra O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica, uma possibilidade teórica interessante para dialogar com a obra em estudo. O ser-visto, conforme o filósofo francês, constitui-me como um ser sem defesa para uma liberdade que não é minha liberdade. Ocorre que, de súbito, vivo uma alienação sutil de todas as minhas possibilidades. “Sentidos dessas reações subjetivas ao olhar do outro: o medo – sentimento de estar em perigo frente à liberdade do outro -, o orgulho ou a vergonha – sentimento de ser finalmente o que sou, mas em outra parte, estando-aí para o outro -, o reconhecimento de minha escravidão – sentimento de alienação de todas as minhas possibilidades” (SARTRE, 2008, p. 344). A vergonha é, por natureza, reconhecimento, isto é, reconheço o que sou como o outro me vê. Nesse sentido, Leopoldo e Silva (2004, p. 188) faz um questionamento interessante: “alguém se sentiria corajoso e mesquinho, generoso ou mesquinho, se existisse só no mundo? Não é o juízo dos outros, maneira como eles me veem, que reflui sobre mim e interfere na minha maneira de ser e de apreender o que sou?”

O segundo capítulo, “Veem-me, logo existo”, ainda em desenvolvimento, está dividido em quatro tópicos. 1. O outro enquanto constituição do eu. 2. Os olhos fosforescentes; 3. A luta por reconhecimento; 4. A vergonha diante do outro.

 

Clara Mayara de Almeida Vasconcelos


O CORAÇÃO DAS TREVAS E O MUNDO SE DESPEDAÇA: ARTÉRIAS DENUNCIATIVAS DO COLONIALISMO

 

Clara Mayara de Almeida Vasconcelos (Doutoranda/PPGLI)

Profª. Drª. Sueli Meira Liebig (ORIENTADORA)

 

RESUMO

 

No século XIX, com o mercado mundial dominado pelo Capitalismo Industrial associado à corrida imperialista que se caracterizava pela maior quantidade de domínios que os países podiam ter, surge a necessidade de “civilizar”. A noção sobre a ação de civilizar estava atrelada, dessa vez, à necessidade de consumo. Com a industrialização, a necessidade civilizar – tornar cidadão – aproximava os grupos étnicos que não estavam inseridos nesse contexto à lógica da economia-mundo a qual determinava o ritmo de desenvolvimento do mundo moderno sob um mesmo regime, o que propiciou uma fonte inexaurível de matéria-prima e mão-de-obra barata. A partir disso, foi construído um discurso de acordo com o sistema social de representações europeu em que a colonização do nativo não bastava se pautar apenas em fazer com que o nativo trabalhasse para o colonizador, mas sim que o colonizado acreditasse em sua inferioridade em relação ao colonizador. Este discurso foi construído com base nas concepções de darwinismo social, em que pensadores utilizaram a teoria de Darwin no âmbito social com uma proposta distinta da inicial, para justificar a organização da sociedade em camadas hierárquicas de poder político e socioeconômico cujo mentor foi Herbert Spencer. Dessa forma, o discurso de seleção biossociológica das elites foi aplicado à colonização belga no Congo e justificou os atos brutais cometidos por eles em relação aos nativos. Podemos observar, a partir disso, que, por meio das teorias e críticas pós-coloniais, podemos estudar os discursos presentes nos textos literários sob o olhar de uma nova estética que compreende os aspectos políticos presentes na construção da relação entre o poder e o discurso, e a dimensão da linguagem que envolve o contexto sócio-histórico, a cultura, os interlocutores e os objetivos de determinado texto. Nesse ambiente de diálogo entre a língua e um contexto particular da história da República Democrática do Congo, dispomo-nos a analisar a representação sócio-histórica-cultural desse país por meio da crítica que Joseph Conrad fez sobre o processo de colonização do congo pela Bélgica em sua novela intitulada O coração das trevas (The Heart of Darkness), publicado em 1902, e a obra de Chinua Achebe O mundo se despedaça (Things Fall Apart) de 1958, o qual é um romance-resposta à obra de Conrad sobre a colonização belga no Congo. Partindo das considerações de Achebe sobre a novela de Conrad, notamos que a sua crítica está fundamentada em sua visão sobre O coração das trevas como uma representação que não está em conformidade com o que de fato é o africano e a África pela negação de sua identidade cultural e de sua humanidade por meio de uma reprodução que escarnece o colonizado diante do colonizador. Achebe possui forte influência no âmbito dos estudos pós-coloniais e partilha do mesmo pensamento que Ngugi wă Thiong’o, que busca afastar do eixo imperialista as representações socioculturais ao promover um ponto de vista crítico à luz do colonizado. Achebe denuncia que a obra de Conrad é preconceituosa em relação à forma como o nativo é representado sem voz e visto sempre em meio às trevas e, quando tenta se comunicar, produz sons ininteligíveis, a partir da interpretação que faz acerca do Coração das trevas sob a sua ótica de escritor africano. A relação entre escritor, texto e interlocutor, a interpretação que se faz dependerá do local em que os sistemas sociais organizam a cultura. Dessa forma foi construída a crítica de Achebe em relação à novela de Conrad, entretanto é necessário lembrarmos que a representação feita em o Coração das trevas mostra a visão do narrador – Marlow – que é um marinheiro inglês sobre o “novo” que ele encontra no Congo. Ele faz uma denúncia dos atos dos colonizadores em relação aos colonizados em que o leitor se sensibiliza com a situação à qual o escravo africano estava sujeito e que os adjetivos utilizados pelo escritor para denominá-los hoje nos faça perceber que se subestima a sua figura, é importante compreendermos que as características etnocêntricas regem modelos da cultura inglesa no século XIX e que não escapa à literatura. Entretanto, ao mesmo tempo em que Achebe critica essa postura de Conrad em sua obra, ele também cai na mesma armadilha às quais o discurso está sujeito: o seu contexto. Primeiro, Achebe escreve em inglês para que a sua obra possa ser melhor aceita em termos mercadológicos, ou seja, escreve na língua da potência europeia no período industrial; segundo, o seu principal personagem despreza um dos preceitos de sua religião ao espancar uma de suas mulheres na semana sagrada; em terceiro, em vez de Achebe promover a descentralização da cultura, permitindo ao colonizado mostrar o seu ponto de vista sobre a sua situação, ocorre o processo contrário por meio da representação de Okwonkwo ao ser afastado do centro da trama de forma gradativa, ao passo que dá mais visibilidade aos costumes ocidentais do que aos africanos. Dessa forma nos propomos a produzir uma pesquisa que vise analisar a construção do símbolo do colonizado em seu momento sócio-histórico-cultural a partir da análise comparatista entre O coração das trevas e O mundo se despedaça a partir de uma pesquisa descritivo-explicativa de cunho comparativo, o que nos levará a procedimentos técnicos de cunho bibliográfico e documental direcionados pelas contribuições de autores tais como Bonnici (2009), D’Onofrio (2002), Hall (2006), Hobsbawn (1998), Lênin (2011), Memmi (2007), Ngugi (1986), Njeng (2008), Orlandi (2012), Said (1990; 2011) e Spivak (1995).

 

Palavras-chave: Imperialismo. Pós-colonialismo. Denúncia social.

Cristina Kelly da Silva Pereira


DE IRMÃOS RIVAIS ÀS MÚLTIPLAS RIVALIDADES: UMA ANÁLISE DA OBRA DOIS IRMÃOS, DE MILTON HATOUM

Cristina Kelly da Silva Pereira (doutoranda PPGLI/UEPB)

Dr. Antônio de Mello Magalhães (orientador)

 

“Proust diz: os belos livros são escritos em uma espécie de língua estrangeira […]”

(DELEUZE & PARNET, DIÁLOGOS, 1998)

 

A produção ficcional de Milton Hatoum vem despertando interesse da academia, não só por sua riqueza literária incontestável, mas, sobretudo, porque suas obras carregam a singularidade de transformar a Amazônia num espaço literário, pois é o que vemos acontecer nos seus três primeiros romances: Relato de um Certo Oriente (1989), Dois Irmãos (2000) e  Cinzas do Norte (2005). Manaus é tanto cenário como personagem na ficção de Hatoum. Essa ambientação é, no dizer de Leyla Perrone-Moisés (2007), sua maior qualidade. “A cidade flutuante, bairro de palafitas cuja destruição é narrada no fim do romance, poderia ser uma metáfora dessa cidade suspensa na memória do romancista, cidade cujas misérias ele desejaria esquecer, e de cujos encantos ele se mantém cativo”. As personagens estão todas presas a essa realidade amazônica. “O ‘habitat’ em que todos se movem, em gozo e sofrimento, é esse lugar de calor e chuva, de águas caudalosas, de frutas, pássaros e peixes nativos, cunhantãs e curumins”. Esse é o próprio universo do romancista “que não pode ser rotulado de exótico porque só o é para um olhar de fora, e não para quem, sendo parte dele, o vê sem idealização, com melancólica lucidez” (PERRONE-MOISÉS, 2007, p. 284).

Essa constatação nos leva a pensar no caráter rizomático da ficção hatouniana, que é aberta para as múltiplas possibilidades de entrada na obra. Essa máquina literária apresenta, ao mesmo tempo, pontos de conexões e heterogeneidade. Se o rizoma é lugar dos encontros imprevisíveis (a via), ele acaba sendo o oposto da estrutura física de uma árvore enraizada, pois se constitui a partir do múltiplo processo de trocas. Para Deleuze há uma boa maneira de ler, mas essa boa maneira não consiste em interpretações que fecham a obra, mas pelo contrário, multiplicam seu uso, criam uma língua no interior de sua língua. “O princípio das entradas múltiplas só impede a entrada do inimigo, o Significante, e as tentativas de abertura para interpretar uma obra que, de fato, só propõe a experimentação” (DELEUZE & GUATTARI, 2014, p. 19).

Propomos como corpus analítico da pesquisa, a obra Dois irmãos. Por meio da rivalidade dos irmãos gêmeos, Yaqub e Omar, o texto traz a tona, de modo muito evidente, a temática da rivalidade que se mostra em múltiplas faces: intrafamiliar, geográfica, política, social, cultural, etc. Hatoum consegue, a partir do contexto amazônico, tratar de questões pouco abordadas na literatura brasileira como, por exemplo, os impactos da ditadura militar no Norte do país. Consideramos ainda, que o tema da rivalidade por ser transversal, à medida que corta todo o enredo, pode ser uma importante chave de leitura da obra.

O caráter palimpséstico de Dois irmãos já foi sinalizado pela crítica como bem fez Benedito Nunes (2007), ao defender que o romance Dois Irmãos possui uma tríplice origem: etnográfica, bíblica e literária, remontando “por um lado, a uma das mais primitivas representações grupais, por outro, à história verotestamentária de Esaú e Jacó, e finalmente, ao romance machadiano de título homônimo” (NUNES, 2007, p.216). Nunes nos indica que a obra de Hatoum não gera um mito novo, mas busca na narrativa bíblica e literária figuras míticas já existentes, que são reformuladas e moldadas pelo autor.

Partindo desse lugar singular (Norte), propomos a seguinte questão: De que maneira (ou maneiras) os jogos rivais, no interior da obra, geram personagens que no seu fazer cotidiano revelam resistência?

A hipótese central é que ao analisar as personagens ficcionais (Zana, Domingas, Halim, Nael, Yaqub, Omar e Rânia), encontramos, de forma quase invisível, desvios e balbucios que sinalizam manifestações de resistência e protesto. Dito de outro modo, é no fazer cotidiano das personagens, que nascem os desvios sinalizando resistência dos fracos da narrativa. São personagens de características híbridas, ou como diria Silviano Santiago (2000), personagens que ocupam o entre-lugar, no sentido da produção de identidade; pois são imigrantes, descendentes de imigrantes, indígenas, descendente de indígenas, e as duas coisas ao mesmo tempo, como no caso de Nael, um ser que se constrói a partir dessa mistura.

Para pensar nesses desvios advindos do cotidiano, dois personagens podem ser destacados como exemplo: Nael, o bastardo ‘filho de ninguém’, e Domingas, a índia domesticada; ambos serviçais da família libanesa. Em suas práticas banais do dia-a-dia, aparentemente passivas e dóceis, percebemos táticas que subvertem a ideia de passividade, pois se mostram resistentes e transgressoras, contrariando as estratégias institucionais (familiar e sócio-política), que geralmente, são autoritárias e impostas em forma de favor, submissão e tutela. A astúcia se encontra justamente nas táticas criadas por eles compondo uma rede que Michel de Certeau chama de antidisciplina. São essas operações do cotidiano que se caracterizam como forma de apropriação e consumo indicativo de inteligência e criatividade.

A teimosia de Nael pode ser percebida de duas formas: sua insistência em estudar e se formar, apesar de toda a adversidade e, na produção de um engenhoso texto que conta a história da família libanesa sob sua perspectiva. De igual modo, Domingas, silenciosamente, demonstra resistência; Sua insistente presença, por si só, emana potencia – é Domingas que organiza e limpa a casa; é ela que alimenta a família, compra comida e até negocia com vendedores; assume a função de atender sexualmente os filhos de Zana e Halim; é a companheira de Zana nas orações e aflições causadas pelo Caçula; é quem cura a gonorreia de Omar com sua sabedoria indígena; é quem primeiro desconfia das intenções do indiano Rochiram; por fim, é Domingas a única que dá a Halim um neto, permitindo a continuidade da família.

O narrador/personagem não poder ser analisado conforme a lógica binaria, pois Nael é, e não é, libanês e indígena, ao mesmo tempo, possui uma identidade limiar. Desse modo, a obra hatouniana atrapalha a ideia de identidade como categoria monolítica e fixa. O mesmo pode ser dito em relação a Domingas. Numa leitura apressada ela pode ser percebida como uma indígena domesticada de comportamento passivo e silencioso, mas a sua presença é marcante e determinante, já que “as refeições da família e o brilho da casa dependiam dela” (HATOUM, 2006, p.18). É, portanto, um silêncio que fala, pois a narrativa depende dela, do seu olhar, diz o narrador: “a minha história também depende dela, Domingas” (HATOUM, 2006, p.18). Em outras palavras, o silêncio de Domingas não significa mudez, mas é possível que sua maneira de falar seja pouco compreendida, isto é, um “balbucio”, para usar a expressão de Hugo Achugar. Balbuciar é uma maneira singular, diferenciada de a periferia falar. O fato da personagem não falar, não significa que seja muda. É a autoridade (os que ocupam a hegemonia linguística, econômica, política e cultural) que determina que esse “sem boca” não tem nada a dizer, ou quando ele fala, não há mecanismos de compreensão.

Nosso referencial teórico se dividirá em três momentos: Como aporte para a leitura da ficção hatouniana, que fala desse lugar esquecido pela literatura brasileira e coloca em evidência personagens que normalmente são marginalizados, iremos trabalhar com o conceito de literatura menor de Deleuze-Guattari. Ao transformar a cidade de Manaus em cenário e personagem de sua ficção, Hatoum acaba fazendo com que a literatura se aposse desse lugar “menor” para ser narrativa da e na vida, se aproximando da teoria guattaro-deleuziana de literatura menor. “Uma literatura menor não pertence a uma língua menor, mas, antes, à língua que uma minoria constrói numa língua maior. E a primeira característica é que a língua, de qualquer modo, é afetada por um forte coeficiente de desterritorialização” (DELEUZE & GUATTARI, 2014, p. 38). A literatura menor se deixa contaminar pelo político fazendo com que todas as questões individuais estejam ligadas à política, ou seja, “a questão individual, ampliada ao microscópio, torna-se muito mais necessária, indispensável, porque uma outra história se agita no seu interior. É neste sentido que o triângulo familiar se conecta com outros triângulos, comerciais, económicos, burocráticos, jurídicos, que lhes determinam os valores” (DELEUZE & GUATTARI, 2014, p. 39).

Utilizando os conceitos de ‘balbucio’ e ‘planeta sem boca’ de Hugo Achugar, queremos pensar sobre a singularidade da produção latino-americana contemporânea, seu lugar de enunciação e seu modo próprio de falar; Pensar sobre essa literatura que cada vez mais tem se engajado com personagens e tramas advindos de lugares silenciados e esquecidos. O uruguaio Hugo Achugar problematiza a produção de conhecimento vinda de outro lugar que não do ‘centro’, da periferia; tratando periferia e marginalidade como sinônimas, o autor entende que o sujeito periférico e marginalizado que quase não fala ou ‘balbucia’, pertence ao lugar de minoria subjugada e subvertida. Por isso, ele afirma que é necessário compreender o lugar de onde se fala. Balbuciar é uma maneira singular, diferenciada de a periferia falar. Nesse caso, a ausência de fala não significa mudez. É necessário reivindicar o balbucio para que ele seja ouvido, percebido (ACHUGAR, 2006, p. 20).

No que se refere ao enfrentamento das culturas e a analise detalhada das práticas cotidianas dos personagens, lançaremos mão da teoria das práticas cotidianas e suas ‘táticas e estratégias, desenvolvida por Michel de Certeau, em sua abordagem sobre a arte do fazer, quando analisa as narrativas de práticas comuns: o cotidiano da cultura popular/marginal.  “Para ler e escrever a cultura ordinária, é mister reaprender operações comuns e fazer da análise uma variante do seu objeto” (CERTEAU, 1998, p. 35). Partiremos da teoria das práticas cotidianas que tem a intenção de “extrair do seu ruído as maneiras de ‘fazer’ que, majoritárias na vida social, não aparecem muitas vezes senão a título de resistências ou de inércias em relação ao desenvolvimento da produção ‘socio-cultural’” (CERTEAU, 1998, p. 17). Ao indagar sobre as operações dos usuários supostamente entregues à passividade e à disciplina, Certeau descobre que existe uma fabricação que se camufla no sistema de produção (que pode ser literário, televisivo, comercial, familiar, etc.) e isso acontece “porque a extensão sempre mais totalitária desses sistemas não deixa aos ‘consumidores’ um lugar onde possam marcar o que fazem com os produtos”. As ‘táticas’, observadas por Certeau, vêm de uma massa marginalizada que acabou se tornando uma maioria silenciosa (CERTEAU, 1998, p. 44). As táticas aparecem nas práticas banais do dia-a-dia como falar, andar, fazer compras cozinhar, ler, etc. Os fracos que vão tirando partido dos fortes acabam por combinar no momento oportuno elementos heterogêneos (CERTEAU, 1998, p. 45). As táticas remontam a um passado imemorial de inteligência com astúcia como as camuflagens de plantas e animais (CERTEAU, 1998, p. 47).

Etiene Mendes Rodrigues


UMA PROSA CURTA NUM FIO:  VIOLÊNCIA E O FEMININO NA CONTÍSTICA DE MIA COUTO

 

Etiene Mendes Rodrigues (Doutoranda /UEPB /PPGLI)

Profa. Dra. Rosilda Alves Bezerra (Orientadora / UEPB / PPGLI)

 

INTRODUÇÃO: Há alguns anos lendo e estudando a obra de Mia Couto, bem como levando para sala de aula sobretudo sua produção em contos, sentimos a necessidade de aprofundar algumas percepções, intuições e dados que foram sendo observados no decorrer das leituras. Dentre o labor formal da obra do escritor moçambicano, destacamos o modo como são construídas as personagens femininas, sua relação com o espaço e o contexto social. Nesse sentido, um dos aspectos que nos instigou, nos contos de Mia Couto, foi o modo como o espaço parece ter uma função central na construção das personagens, sobretudo as femininas. Espaço e personagem, portanto, assumem uma significação diferenciada, que convida a uma leitura mais detida. Como corpus de estudo, elegemos narrativas curtas dos seis livros que compõem a produção do autor: “A fogueira”; “Afinal, Carlota Gentina não chegou a voar?”; “Saíde, o lata de água”; “A menina de futuro torcido”; “Patanhoca, o cobreiro apaixonado”; “As lágrimas de Diamantina”; “Amor à última vista”; “Na terceira pessoa”; “A confissão de Tãobela”; “Fosforescências”; “Os negros olhos de Vivalma”; “Rosalinda, a nenhuma”; “A princesa russa”; “O perfume”; “O calcanhar de Virigílio”; “As três irmãs”; “O cesto”; “A saia almarrotada”; “Meia culpa, meia própria culpa”; “Na tal noite”; “A despedideira”; “Mana Celulina, a esferográvida”; “O nome gordo de Isidorangela”; e “Os olhos dos mortos”.

 

JUSTIFICATIVA: Este trabalho justifica-se, primeiramente, por atentar para algumas questões que julgamos pertinentes: a produção de Mia Couto tem-se revelado de grande valor estético no que diz respeito à sua elaboração. Através de um amplo trabalho com a linguagem, o leitor é colocado diante de situações humanas e sociais as mais diversas. Além disso, as narrativas de Mia Couto expressam, numa perspectiva literária, um testemunho da condição feminina, marginal e discriminada, assinalando, assim, a exclusão dessas personagens em relação ao grupo social a que pertencem, de tal forma que seu discurso [das personagens] se constitui numa denúncia do silenciamento e da dominação da figura feminina por parte dos homens. O escopo deste trabalho é analisar a violência (tanto física quanto simbólica) sofrida pela mulher, que figura nos contos, significa observar e refletir sobre os processos de dominação a que as mulheres são sujeitadas, tal como postulam os teóricos dos estudos pós-coloniais e da crítica feminista. Enveredar por essas correntes de análise faz-se relevante porque contribui para repensar as estruturas de poder e analisar, dentre outras, a questão opressor/oprimido, na tentativa de “integrar a mulher à sociedade”, possibilitada através dos usos da linguagem e da experimentação linguística. (BONNICI, 2009, p. 266-267). A ampla recorrência de personagens femininas que vivem situações de opressão merece uma análise mais apurada. Desde as primeiras publicações de Mia Couto, percebe-se que as relações homem/mulher são marcadas por desencontros de natureza vária: casamentos desgastados pela rotina, ciúmes, violência doméstica as mais variadas. Esses conflitos são colocados com mais ênfase, a nosso ver, em narrativas curtas, de modo que as formas de violência tomam outras feições, outras intensidades e acarretam consequências mais drásticas. Se as personagens femininas vivem, cotidianamente, situações de opressão, esse fato é favorecido pelos espaços em que elas estão inseridas, habitados, também, por aqueles que são seus opressores: maridos, pais e irmãos. Curiosamente, esses mesmos espaços que oprimem são também os que impulsionam as personagens para uma mudança no estilo de vida, que nasce, primeiro, de um forte desejo de vingança. Neste sentido, a abordagem do espaço em que as personagens se movem se faz essencial nesta pesquisa. Além das questões elencadas anteriormente, outro aspecto que justifica nossa pesquisa é o fato de que os estudos sobre a contística de Mia Couto mostram-se ainda muito tímidos. Nota-se, com relação aos romances um maior interesse por parte da crítica especializada. Também não localizamos estudos que tenham como foco a análise de espaço e personagem, aliados a questões de violência de gênero. Noutras palavras, intencionamos um estudo que articule a tríade personagem, espaço e gênero. Com esta aproximação, pretendemos realizar uma investigação que estabeleça uma abordagem pautada na análise das personagens e espaço, aos caminhos da pesquisa mais contemporânea, como os estudos de gênero, mais especificamente ao modo de representação da condição feminina. Nesta conjugação evitamos uma abordagem meramente temática ou demasiadamente formal dos contos a serem escolhidos.

 

OBJETIVOS: Os objetivos de nossa pesquisa são os seguintes: GERAL – Estudar os modos de articulação entre espaço e personagens em contos que integram a contística de Mia Couto e observar como esta articulação revela as condições sociais de opressão e violência vividas por mulheres, bem como os modos de resistência a esta opressão. ESPECÍFICOS: 1) Analisar de que modo os espaços são construídos e como eles interferem na construção das personagens; 2) Analisar as situações de violência (física e simbólica) em que as personagens femininas estão representadas; 3) Observar e refletir sobre as formas de resistência das mulheres perante as diferentes situações de opressão; e 4) Apontar, no emaranhado das narrativas, ações que revelam a busca da construção de novas identidades femininas.

 

METODOLOGIA: Para o desenvolvimento da pesquisa, adotaremos o seguinte percurso metodológico: inicialmente, será feito um levantamento acerca das personagens femininas na contística de Mia Couto, visando a delimitar um corpus para análise mais detida. Posteriormente, serão arrolados estudos que já foram produzidos sobre a obra do autor moçambicano, para que tenhamos uma visão mais precisa de sua fortuna crítica. Num terceiro momento, observaremos os conflitos e situações de violência vividos por essas personagens, os espaços em que eles se configuram e quais as estratégias adotadas para uma possível libertação. Será observada, sobretudo, a violência de que são vítimas no contexto social em que se encontram. Também recorreremos a elementos da teoria da narrativa, dando ênfase especial para as categorias espaço e personagem. O passo seguinte, e central, será a análise detida dos contos selecionados, procurando observar a construção das personagens femininas, os espaços que elas ocupam e os possíveis sentidos que assumem na narrativa. Busca-se, com a metodologia adotada, aliar a tradição dos estudos literários voltados para a construção da narrativa (formas, procedimentos e respectivos efeitos) à abordagem mais temática, que se fortaleceu notadamente com o aparecimento dos Estudos Culturais. A junção destas duas perspectivas pode contribuir para uma abordagem propositiva no âmbito das análises em torno do autor. Acreditamos que, através da análise de personagens e espaço, chegaremos à compreensão e uma explicitação mais precisa da condição feminina bem como sobre o modo como as mulheres vão construindo suas identidades em meio a um contexto ainda predominantemente sexista, machista e violento. Como embasamento teórico, que fundamentará a pesquisa, recorreremos às reflexões de Bourdieu (2011), Xavier (2007), Perrot (2013), Bachelard (2003), Bonnici (2009), Zolin (2009), Girard (2011), Laranjeira (2001), Chauí (2000), Candido (2007), Fonseca & Cury (2008), Borges Filho (2009), Lyra (1980), Saffioti (2004), entre outros estudiosos, sobretudo, àqueles que discutem questões de gênero e feminismo negro, tais como Gayle Rubin, Susan Sontag, Julia Kristeva, Simone de Beauvoir, Helene Cixous, bell hooks, Angela Davis, Gayatri Spivak.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS: Em “Apresentação” a uma importante obra que tematiza a violência na literatura, Pedro Lyra (1980) afirma que “A literatura brasileira recente é, em suas manifestações mais representativas, uma literatura voltada contra a violência que sofremos hoje (…) Uma literatura violenta, de condenação da violência.” (p. 06) Esta, por sua vez, de acordo com o crítico, ocorre de diversas maneiras: no “desnudamento da linguagem”, na “desintegração da forma”, no “rompimento do discurso”, e na “exacerbação dos temas”. Para ele, trata-se de uma literatura empenhada em “produzir conhecimento para a ação do leitor”. Ou seja, é uma literatura que, ao invés de provocar fruição, “pretende” levar o leitor a pensar a realidade e agir sobre ela, de modo a modificá-la. O texto de Lyra fora escrito há quase quatro décadas e, em princípio, dizia respeito à literatura brasileira de então. No entanto, percebe-se que as reflexões do autor podem ser estendidas a outras literaturas – prova é que, os artigos que compõem a coletânea abrangem textos gregos, por exemplo. No que se refere às literaturas africanas de língua portuguesa, Moreira (2015) atesta que uma de suas marcas está relacionada à violência, notadamente, relacionada àquela advinda dos conflitos de guerra e pós-guerra. Autores como Pepetela, Luandino Vieira, Mia Couto, Ondjaki, Paulina Chiziane, Chimamanda N. Adiche entre outros, são exemplos de como a produção literária de seus respectivos países está permeada pela violência. Isto ocorre porque, segundo a estudiosa, “o desenvolvimento da literatura nesses países acontece concomitantemente às lutas pela independência e pela construção da nacionalidade, em plena segunda metade do século XX”. (MOREIRA, 2015, p. 01). Especificamente sobre a produção de Mia Couto, percebe-se que, além da violência provocada pelas guerras, existe outra de cunho mais cultural. Trata-se da violência contra a mulher, a qual ganha respaldo e se “naturaliza” nas sociedades patriarcais. No entanto, nem sempre as mulheres se comportam como vítimas. A partir dos contos que vimos lendo e analisando, observamos que, apesar de, em determinados lugares, as mulheres virem travando lutas contra a ordem patriarcal, nas narrativas de Mia Couto, as personagens lutam sozinhas – não tendo o respaldo de um grupo, de um movimento social que busque conscientizar e lutar pelos direitos das mulheres, elas criam formas de reagir à violência. Daí, talvez, o desejo de vingança, a tentativa de resolver a questão a partir de uma perspectiva pessoal. Nesse sentido, a luta e a resistência assumem formas trágicas, muitas vezes. Mas, trata-se sempre de uma reação que revela uma tomada de consciência ou, no mínimo, uma crise das personagens femininas ante toda a condição de oprimida e desvalorizada como pessoa, como individualidade.

 

REFERÊNCIAS

 

BONNICI, Thomas. “Teoria e crítica pós-colonialistas”. In: BONNICI, Thomas & ZOLIN, Lúcia Osana (orgs). Teoria da literatura: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3.ed. Maringá: EDUEM, 2009.

COUTO, Mia. O fio das missangas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

____. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Lisboa: Editorial Caminho, 2001.

____. Estórias abensonhadas – contos. 8.ed. Lisboa: Editorial Caminho, 2008.

____. Contos do nascer da terra. São Paulo: Cia. das Letras, 2014.

____. Vozes anoitecidas – contos. São Paulo: Cia. das Letras, 2013.

____. Cada homem é uma raça – estórias. 10.ed. Lisboa: Editorial Caminho, 2002.

GIRARD, René. “Violência e reciprocidade”. IN: ______. Aquele por quem o escândalo vem. Tradução de Carlos Nougué. São Paulo: Realizações Editora, 2011.

LYRA, Pedro. “Apresentação”. Revista Tempo Brasileiro – A violência na literatura. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1980.

MOREIRA, Terezinha Taborda. “História, violência e trauma na escrita literária angolana e moçambicana” – Texto de apresentação. IN: Cadernos CESPUC, n. 27. Belo Horizonte, 2015.

 Fernanda Medeiros de Figueirêdo


 

A CONSTRUÇÃO DO PERSONAGEM LITERÁRIO “DEUS” NA OBRA DE JORGE LUIS BORGES

 

Fernanda Medeiros de Figueirêdo (PPGLI/UEPB)

Orientador: Prof. Dr. Antônio Carlos de Melo Magalhães

 

RESUMO EXPANDIDO:

Ao longo dos primeiros estudos desta pesquisa, que corresponde a uma tese de doutorado na área de Literatura e Hermenêutica com o objetivo de abordar e analisar as características literárias do personagem deus na obra do escritor argentino Jorge Luis Borges, notamos que uma forte característica desse autor é que seus contos se interligam – espaço, tempo e personagens ressurgem constantemente por meio de temas que se repetem e possuem uma simbologia própria. Por isso, voltamos inúmeras vezes à leitura de todos os contos para verificar em quais nuances deus se apresenta, como o personagem surge nas sutilezas de cada narrativa e com quais correntes e autores essa gênese dialoga.

Os contos de Borges que consideramos basilares para esta análise, Los Teologos e La escritura del dios, apesar de repletos de erudição e retomadas de simbolismos diversos, são contos que, como afirma Mendonça (2015, p.11), abraçam a oralidade de tal forma que o leitor sente-se parte daquele universo. Borges facilmente torna o leitor uma parte do todo dentro do Aleph que ele define como um pequeno ponto de visão capaz de abarcar um espaço cósmico de onde se pode enxergar qualquer ponto do universo em qualquer tempo. Esse aleph podendo representar a própria essência de sua escrita e de sua linguagem como não-lugar. De repente, todos os mistérios caem por terra. E até a falta de compreensão torna-se agente de um espetáculo maior situado, por alguns estudiosos, no espaço fantástico da literatura, ou como apontam outros, pertencente ao que se convencionou chamar de mágico/maravilhoso.

Entre as pesquisas analisadas como fortuna crítica a direcionar nosso estudo estão a dissertação de Mendonça (2015), apontando para as narrativas fantásticas e objetos simbólicos, a de Costa (2014) sobre tempo e devir também nesse tipo de narrativa, a abordagem da intertextualidade bíblica nos contos borgeanos, por Gadotti (2012), além de autores já consagrados pela crítica para compreensão de conceitos como simbologia, e neste ponto destacam-se Northrop Frye com o livro Anatomia da Crítica, Carlos G. Jung em O homem e seus símbolos, Jean Chevalier e Alain Gheerbrant  em Dicionário de Símbolos, e até autores como Jack Miles, para pautar nossa investigação sobre Deus.

Apesar de autores como Tzvetan Todorov, David Roas, Remo Ceserani, Filipi Furtado e Bella Jozef realmente ajudarem no entendimento do fantástico diante de tudo que foi debatido até aqui sobre essa perspectiva e o autor em questão, não se faz necessário um aprofundamento sobre esse tipo de literatura que “postula a existência do real, do natural, do normal, para poder em seguida atacá-lo violentamente” (TODOROV, 2012, p. 31). A questão norteadora não é a desconstrução do real, e sim como o personagem deus é visto nos contos analisados, como esse personagem se constrói através da ironia e do sarcasmo de um escritor que passeia por temas como o judaísmo, a cabala, o budismo e a filosofia. Deus, o personagem. Inclusive Miles (1997) já considera que o deus enquanto personagem, mesmo na bíblia, não vai contra o sarcasmo e a ironia que encontramos na obra de Borges. Então esse deus que é o cerne de toda a pesquisa, enquanto criação de Jorge Luis Borges, também reafirma um caráter jocoso desse personagem nos textos bíblicos, fato que havíamos constatado anteriormente na dissertação de mestrado intitulada “Dialogismo e ironia na obra A mulher que escreveu a Bíblia, de Moacyr Scliar”. O fato aqui a ser ressaltado é que o personagem borgeano não é um contrário do personagem bíblico, mas sim uma exacerbação das características que este último apresenta.

Aliás, há uma questão fundamental na concepção de linguagem em Borges, que é a da infinitude da linguagem. Não há fronteiras rígidas, e a separação entre “realidade” e “imaginação ou ficção” é algo sem importância para o escritor. Assim sendo, parte dos personagens, cidades e lugares que ele cita são imaginários, um aspecto fundamental em sua literatura.

Dessa maneira, a razão da escolha pelo personagem deus na prosa de Borges se deve ao fato de que as produções do poeta estabelecem uma conexão estreita com a religião hebraica e o misticismo judaico, suscitando interligações entre a literatura e o sagrado, e estabelecendo uma linguagem simbólica perpassada por diferentes mitos e questões filosóficas e religiosas que merecem ser exploradas. No entanto, Borges vai além da miscelânea de mistérios que um leitor desavisado possa pensar que é a sua obra. Através de uma pitada de sarcasmo e duas de ironia, ele carnavaliza a imagem intocável do memorável personagem tão revisitado anteriormente por diferentes culturas e o transforma em uma figura debochada que pouco se importa com os dilemas humanos e terrestres, dilemas estes que em sua maioria envolvem questões que culminam em posicionamentos e defesas que o deus personagem não se interessa.

Outra questão que não pode ser esquecida ao se levantar as hipóteses norteadoras desta pesquisa é que além de utilizar diretamente o termo “Deus” na maioria de seus contos, Borges cita ainda “o Senhor” e “Jesus” em alguns deles, a exemplo do conto deutsches requiem, no qual ele apresenta o judaísmo como uma servil timidez cristã. Ou seja, há apenas uma mudança de nomenclatura para representar o mesmo personagem que abordamos ao longo desse trabalho, até porque deus nestes cenários é uma ideia e não o nome em si. “Elohim” também é outra definição para este personagem que ele registra no texto De alguém para ninguém (Outras inquisições), no qual especifica ser este o primeiro nome divino de muitos escritos na Bíblia. Assim, existem diversas aclamações recorrentes e termos hebraicos a esse simbólico personagem.

Outra consideração importante é que os reflexos de deus não recaem sobre o homem, figura que na maioria das tramas assume um espelho característico do ser humano enquanto espécie, como se todos os homens fossem muito iguais para merecer qualquer tipo de importância por parte da divindade. Partindo dessas alusões ao sagrado, o personagem deus na obra do autor não é fruto de crenças pessoais, muito pelo contrário, apesar de Borges ser um escritor que sempre admitiu aos leitores e curiosos que as circunstâncias de sua vida influenciaram seus textos, este deus representado concomitantemente ao duplo, ao fantástico e outras nuances através das quais este deus surge, é sim, um personagem sarcástico que mostra a face do desdém frente a criaturas inferiores, embora muito interessantes em suas peculiaridades.

Longe de qualquer doutrina, esse deus aparentemente silencioso folcloriza as religiões inclusive nessa circunstância, pois a falta de diálogo no texto demonstra o distanciamento que essa figura tem de qualquer ser, inclusive do narrador onisciente que descreve, muitas vezes, o que ele “acha” estar pensando a divindade a respeito dos embates travados na terra por homens que brigam entre si em busca de alguma verdade que ao nosso personagem não importa.

O que se apresenta diante dos nossos olhos é um personagem criado com o intuito de descortinar máscaras religiosas, aludindo, inclusive, à cultura popular como ela foi abordada por Bakhtin (2013a) em sua obra A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais, que ressalta a máscara enquanto expressão da festa pública, simbolizando uma alternância de tempos (o oficial e o carnavalesco) que resultava em algum tipo de renovação social a longo prazo.

Assim, até o momento nosso trabalho está estruturado da seguinte forma: um primeiro capítulo intitulado “Teorizando Borges”, no qual trazemos ao debate a fortuna crítica sobre o autor e peculiaridades como a autorrepresentação, que detona a semelhança das características de personagens fictícios com as do autor real, e também uma abordagem da personagem de ficção, pautados nas ideias de Antonio Cândido e Anatol Rosenfeld, além de Bakthin sobre a polifonia, para a partir daí construirmos o que chamamos de gênese do personagem Deus em Borges, suscitando a forma como chegamos à análise desse deus. Pensamos ainda em utilizarmos a teoria de Leonor Arfuch (2010) sobre o espaço biográfico para melhor nos posicionarmos frente à tendência borgeana de se autorrepresentar em narrativas que demarcam diálogos diversos com outras obras, outras culturas, em um espaço de não-lugar da linguagem onde tudo é possível, inclusive ao deus borgeano e à sua ficção.

Na linguagem, e pela linguagem, Borges constrói um deus sarcástico, mais literariamente evoluído do que o deus doutrinário, sendo este capaz de deter todos os saberes vislumbrados dentro de um aleph visto a partir da bagagem instrucional e ficcional do autor, que se baseia em preocupações de fato intelectuais e filosóficas (WILLLIAMSON, 2011). Essa construção vamos analisar no segundo capítulo a priori intitulado de “A gênese do deus borgeano”, no qual já fizemos menção a contos como Los Teologos, O milagre secreto, O jardim de veredas que se bifurcam e A busca de averróis, que nos mostram como deus é o senhor de todas as variações de tempo existente na obra de Borges. Outra peculiaridade ressaltada nesse capítulo é o que chamamos de “divino descaso”, uma avaliação do pouco que deus se importa com as questões terrenas descritas nas tramas que vimos até aqui.

Por fim, em um terceiro capítulo ainda pouco desenvolvido, esperamos discorrer sobre nuances percebidas no conto La escritura del dios, como simbolismos e associações entre a escrita de Borges e a cultura judaica, assim como da cabala e outras retomadas ideológicas.

 

PALAVRAS-CHAVE: Deus. Personagem literário. Borges.

Franksnilson Ramos Santana


CONTOS E MICROCONTOS QUE NÃO CONTAM: A NÃO NARRATIVIDADE NO DOMÍNIO TEXTUAL E A NARRATIVIDADE SOB ALCANCE DO LEITOR

Franksnilson Ramos SANTANA – Doutorando

Orientador: Dr. Antonio de Pádua Dias da SILVA

As investigações em torno das obras literárias que adentram em uma categoria designada “Literatura Contemporânea” se multiplicam, e através de múltiplos caminhos teóricos suscetíveis sempre à divergência, sobretudo pelo motivo de a própria “literatura” desprover de um conceito inviolável sobre si. A Tese a ser desenvolvida se desprende, como todas as demais que se erguem sobre o eixo da Teoria Literária, a problematizar as certezas e incertezas que se afirmam acerca do literário, ou dos seus componentes, por assim dizer, seus gêneros, formas, tipos, categorias. A escrita desse trabalho, no entanto, compreende especificamente como objeto de estudo, obras de extensão curta, mínima, micro, que são apresentadas ao público leitor com identificações que as façam ser assimiladas enquanto pertencentes ao gênero “narrativa”: os contos, microcontos, minicontos, ministórias, microficções, minificções, os microrrelatos, microcuentos, minicuentos, microficciones, minificciones, em espanhol, as flash fictions, em inglês, as micronouvelles, em francês, micro-escritas que embora sejam entendidas como narrativas, são, em contrapartida, a recusa das próprias, de forma que sua leitura não é possibilitada através dos mesmos meios técnicos utilizados para a interpretação de obras irrefutavelmente representantes de um determinado gênero.

 

Na pesquisa, portanto, direcionamos nosso olhar a obras desse tipo escritas não apenas no Brasil, senão em toda a América, na Europa, considerando também os demais continentes. E embora não haja dado histórico seguro que denuncie o lugar ou uma data em que essas obras se originaram, uma parte considerável da crítica literária sustenta que esse gênero, conhecido curiosamente por uma pluralidade de termos, nasceu com o escritor guatemalteco Augusto Monterroso, precisamente em 1959, quem, entre dezenas de narrativas curtas que compõem o livro Obras Completas (y otros cuentos), inseriu uma escrita de extensão hiperbreve, o famoso “El dinosaurio”, com o seguinte conteúdo: “Cuando despertó, el dinosaurio todavía estaba allí.”. A popularidade do “primeiro microconto” inspirou a centenas de escritores posteriores que têm até o presente século se comprometido na produção de muitos outros com o mesmo estilo e tamanho, conseguindo, por conseguinte, que esse tipo de escrita fosse mundialmente interpretado como “gênero literário”, “gênero narrativo”, conduzindo os que o recepcionam a se esquivar de questões que indaguem o que essas escritas micro têm para oferecer enquanto literatura, enquanto narrativas, por mais que sejam difundidas comercialmente mediante termos literários.

 

Obras que vão do curto ao minúsculo, e que chegam às mãos dos leitores afirmando-se narrativas, não havendo nelas, porém, narratividade. Esse seria o problema central que nos encaminhou para a escrita da Tese. Declaram-se narrativas através de lexemas como conto e relato, principalmente, que são subgêneros do gênero narrativa. Conto e relato não realizam outra atividade senão narrar. A narração em atividade, quer dizer, a narratividade, fará aparecer no plano escrito uma história ao leitor, de modo que, fatalmente, apenas história é contada, relatada, enfim, narrada. Não propomos embasar uma teoria literária sobre as histórias possíveis ou ocultas dos microcontos. Lançamos um olhar, antes de tudo, ao plano escrito, ao registro mínimo do autor, e a partir daí não tomar como verdade irrefutável o que ele próprio, o criador da obra, ou qualquer participante da recepção ou comercialização assegurar quanto à concepção dela. Não almejamos, com isso, compreender a não-narratividade de muitos chamados microcontos como perda de valor literário. Seu diferencial está, justamente, na narratividade infértil, na recusa da representação de determinado subgênero narrativo, capaz de promover leituras especiais, que põem em risco o próprio sentido etimológico do termo “leitura”.

 

Quando se aceita o “microconto” como narrativa, por mais que ele em seu plano escrito não entregue uma história, toda leitura se fará para que essa designação seja no fim das contas coerente, e não receba refutação. Por outro lado, defendemos que os “microcontos” tomados para análise não conseguem ser lidos com o mesmo rigor com que se lê muitos contos. Todo conto que possui unidade dramática, partes do enredo, personagens, narrador, não exige uma leitura primeira do leitor que não seja para sua interpretação, hermenêutica. Já o leitor dessa escrita micro que viola as limitações de gênero, em um primeiro momento, por não conseguir contemplar uma história à sua frente, deixa a função tradicional de explorar sentidos de uma obra irrepreensivelmente pertencente ao gênero x, para evocar estruturantes de uma história que julga estarem ocultos no plano escrito. Escritas que fogem da representação de um gênero sob o olhar de um leitor contemporâneo educado, muito mais do que séculos atrás, a manusear as ferramentas do próprio escritor. No fim, os vários gêneros sempre percorrerão a mente dos leitores, ainda que a micro-escrita escape deles. Objetivamos, com a Tese, compreender por que razões os “microcontos” aos quais nos referiremos carecem de narratividade para que possam ser divulgados como “narrativas”, ao passo que promovem uma recepção peculiar, na qual a narratividade só é evocada e trabalhada fora da escrita, isto é, na mente do leitor.

 

Discutiremos no curso do trabalho sobretudo os conceitos de conto, relato, história, ficção, literatura, leitura, interpretação, hermenêutica, texto e micro/mini-conto/relato/ficção/história. Antes disso, não esqueceremos de discutir a categoria “Literatura Contemporânea”, momento em que recordaremos o curto, o breve, o mínimo,  como formas e estilo poderoso para este/neste milênio, como anteviram primeiramente Ítalo Calvino (1990), depois Sônia Mª van Dijck Lima (2008). Será necessário, contudo, considerar um cenário literário pós-autônomo que se constrói passadas as vanguardas no Ocidente, de acordo com Josefina Ludmer (2007), no qual contracenam obras que se exaurem da própria literatura, para o alcance de efeitos para fora dela mesma, pensamento compartilhado e problematizado por Luciano Barbosa Justino (2014) e Antônio de Pádua Dias da Silva (2016). Já no que se refere diretamente às micro-escritas, chamadas microrrelatos, Irene Andres-Suárez (2010) nos auxiliará com o seu conceito de “natureza elíptica” em escritas hiperbreves, ainda que o utilizemos aqui com outra perspectiva. Para apoio de nossa ideia sobre o conto enquanto narrativa, entrarão, entre outros, Walnice Nogueira Galvão (1983), Massaud Moisés (2006) e Ricardo Piglia (2004). Discutiremos ainda os conceitos de narrativa hipercurta segundo a óptica de Marcelo Spalding (2008) (2012), Pedro Gonzaga (2007), David Lagmanovich (2009), Darío Hernández Hernández (2012), Lauro Zavala (2004), Juan Armando Epple (1990), Luciene Lemos de Campos (2011) e Cristina Álvares (2012), para citar alguns. São, no entanto, Graciela Tomassini & Stella Maris Colombo (1996), as pesquisadoras que, ao diferenciarem microrrelato de minificción, apresentam uma expressão importante, a “categoria transgenérica” que dirá respeito à minificção. Em outras palavras, quando uma escrita literária tem a sua extensão diminuída e se afasta da estrutura convencional de uma narrativa, do conto, neste caso, não pode ser assimilada como um conto hipercurto, senão como uma ficção hipercurta, minificción, a qual alude a um número plural de gêneros, dependendo de sua aparência escrita ou do parecer particular do leitor. Doutro modo, sustentaremos que, se houver de fato “transgenericidade”, ela será exterior à escrita. Não é que muitos gêneros se reúnem nos microcontos, micro-relatos, microficções. Os muitos gêneros se reúnem na mente do leitor, na medida em que essas escritas tendem em maior grau ao anti-gênero.

 

Farão parte de nosso corpus de análise um conjunto de micro-escritas, que têm ido ao comércio como contos, o que se percebe na descrição da ficha catalográfica dos respectivos livros que compõem, as mesmas que têm sido nomeadas pela crítica literária com os termos mini/micro-contos, ministórias, micro-relatos, mini/microficções. Algumas dessas obras são conhecidas, como Os cem menores contos brasileiros do século, organizado por Marcelino Freire (2004), ou Ah, é?, de Dalton Trevisan (1994); outras menos populares ou mais recentes: Práticas proibidas, de Edilberto Coutinho (1989); Minicontos e muito menos, um livro bipartido, de Marcelo Spalding e Laís Chaffe (2009); Minicontando, de Ana Mello (2009); Canoas Cult: poemas e microcontos, de Joana Ester Bonorino (2009); Retalhos: contos e microcontos, organizado por Edson Rossatto (2007), o mesmo organizador de Histórias liliputianas: antologia de microcontos (2010), e Entrelinhas: antologia de contos e microcontos (2008). São obras brasileiras entre outras, impressas, além das digitais publicadas em formato ebook, ou livremente por meio de sites, e das estrangeiras. Em algumas poderemos lançar nossa crítica a todas as micro-escritas inscritas, em outras obras deveremos selecionar as que contribuem para sustentação da Tese.

 

Neste momento, já temos um capítulo elaborado que passa por uma revisão, e o segundo capítulo vem sendo projetado. No capítulo primeiro, realizamos um percurso teórico que explora todos os conceitos que nos interessam dentro da literatura, citados acima, partindo do conto para chegar nesse modelo de micro-escrita, ainda comercialmente difundido pelo termo “conto”, desprovido de narratividade, e que ensaia lançar essa narratividade ao domínio da recepção. Por meio da discussão em torno das escritas curtas e micro, buscaremos que a literatura contemporânea elasteça sua concepção.

 

Em capítulos posteriores trataremos de apresentar muitos “contos” e “microcontos”, com o objetivo de analisá-los para esclarecer sua não-narratividade e discutir sobre uma narratividade que é evocada pelo leitor. Procuraremos defender o termo “micro-escrita” para referência dessas obras, vez que seu plano escrito consegue denunciar apenas o tamanho (micro) e modo de elaboração (escrita). Em um primeiro momento, argumentaremos que essas obras aludirão muito mais a uma fôrma, a um algo significativo que se escreveu em poucas palavras, que ensaia ser narrativa, poema, relato, mas não consegue imediatamente por ausência de estruturantes de gênero, que não estão em outro lugar senão na leitura. Em um momento final, maturaremos a ideia do “trans-gênero” ou “poli-gênero” como algo imaginado por um leitor contemporâneo de função ressignificada. O autor do “micro-conto” trabalha em face desses leitores cientes dos estruturantes dos gêneros tradicionais, educados a escreverem suas próprias histórias, seus próprios versos. No máximo, na segunda metade de 2020 desejamos concluir a Tese e defendê-la.

 Gabriela da Paz Araújo


(NÃO) PERTENCIMENTO: TERRITORIALIDADES E DESTERRITORIALIZAÇÃO EM FRONTEIRAS PERDIDAS E PASSAGEIROS EM TRÂNSITO DE JOSÉ EDUARDO AGUALUSA

 

Gabriela da Paz Araújo

Orientadora: Profª Drª Rosilda Alves Bezerra

 

Linha de pesquisa: Literatura Comparada e Intermidialidade

 

 

RESUMO:

 

Esta proposta de pesquisa busca examinar os contextos históricos, políticos e literários que envolvem a construção das obras Fronteiras perdidas e Passageiros em trânsito de José Eduardo Agualusa. As narrativas que constituem as obras são histórias espaciais de deslocamento, num universo ficcional globalizado e globalizante, ultrapassando fronteiras geográficas e discursivas. Esta literatura, em trânsito, reflete o espaço além das fronteiras do pós-colonialismo, espaço global que vem suplantar o espaço do Estado-Nação colonial. As fronteiras perdidas do tempo/espaço, da realidade/ficção apontam para uma interseção do aqui/agora e do além/enquanto isso, onde se ambientam essas viagens literárias num universo de realidade paralela ao mundo global do pós-colonialismo.

 

Palavras-Chave: Pertencimento, Território, Identidade.

 

 

INTRODUÇÃO

 

As discussões que se estabelecem sobre a identidade são fundamentadas a partir das constantes mudanças que o campo identitário sofre, sendo levadas a produzir uma crise de identidade. O mundo é formado por fronteiras difusas possibilitando o cruzamento de diferentes culturas, tornando questionável a preservação da identidade cultural como algo imutável. Portanto, a identidade cultural se encontra em constante transformação, tornando-se algo inacabado, enquanto as constantes modificações que ocorrem pela incorporação de novos elementos possibilitam o desenvolvimento de um processo de nova estruturação cultural. Os contos narrados nas coletâneas Fronteiras perdidas e Passageiros em trânsito apresentam personagens de identidades ambíguas, duplos reflexos da realidade angolana e mundial, além de suas ambiguidades abarcarem ambivalências tanto no aspecto racial quanto no aspecto social. São alguns exemplos dessas ambivalências, respectivamente, Dos perigos do riso; Não há mais lugar de origem e O homem a quem chamavam Falcão; O contrabaixo, entre outros. As questões que envolvem os debates sobre espaço e território suscitam a ideia de que os processos que os envolvem estão continuamente em transformação. Nesse sentido, analisaremos as obras Fronteiras perdidas e Passageiros em trânsito de José Eduardo Agualusa com objetivo de destacar a ideia de desterritorialização, processo realizado a partir da mobilidade e de território como espaço geográfico natural, delimitado por fronteiras bem definidas. Nesse sentido, o termo território, será analisado por meio de uma concepção mais integralizadora, considerado como um espaço relacional de confronto, além de seus elementos serem considerados como constituintes desse processo, através  das múltiplas dimensões históricas culturais, temporais e sociais.

 

JUSTIFICATIVA

 

Esta pesquisa se justifica, ao compreender que a mobilidade de pessoas, ideias, produtos e a reafirmação identitária são elementos integrantes de um panorama cultural que precisa ser mais bem entendido. Nessa perspectiva, nos voltamos ao estudo da literatura africana, com vistas à análise de obras que tratam de países onde ocorreu a colonização. Dessa forma, objetivamos fazer a distinção entre espaço e território, para o entendimento do processo de desterritorialização por qual passam as personagens, além de destacar suas dificuldades durante o período pós-colonial e as características de (não)pertencimento que marcam suas identidades.

 

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

 

Viajar possibilita ao indivíduo conhecer novas sensações que lhe permitem “esquecer”, de certa forma, o vivido, e embarcar em um novo mundo, repleto de significações e possibilidades. Ao viajante é permitido conhecer o novo e ir se reconhecendo através do percurso que realiza em diferentes espaços e tempos. Com base nessa ideia, o indivíduo viajante é envolvido por elementos diferenciados, que se unem ou não, para as novas concepções de identidade, tendo em vista que a viagem é um elemento propulsor que possibilita a (re) significação da identidade, isto é, o “eu” se percebe em relação às travessias que realiza, em interação entre espaços, tempos, além do contato com diferenciados “eus” que encontra pelo caminho percorrido. A ideia de território, de uma identidade pela região, iniciou-se com o surgimento do Estado-Nação Ocidental, passando pela Revolução Industrial. No entanto, essa visão identitária foi fundamentada por meio de dois pilares: a dominação estatal e a auto-identificação dos sujeitos. Vivemos uma realidade na qual tais tipos de conceitos precisam ser urgentemente revistos. A mobilidade de pessoas, ideias, produtos e a reafirmação identitária são elementos integrantes de um panorama cultural que precisa ser mais bem entendido. Nos países onde ocorreu a colonização, esse panorama cultural se faz mais complexo, principalmente na África pós-colonial. Identificar-se em um território, entre fronteiras, abarca a problemática identitária, que compreende “aquelas formações de identidades que atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas dispersadas para sempre de sua terra natal” (HALL, 2011, p.88-89). Nesse sentido, esse espaço tênue entre dois lugares é denominado de “entrelugar[1]”. O sujeito que se localiza, ou tenta localizar-se, em meio as fronteiras culturais difusas não possuem uma unidade cultural por estar instaurado na estreiteza da fronteira com um apanhado de elementos em constante movimento, que gera a consciência de um não pertencimento. O sujeito deste “entrelugar” é tomado pela falta de definição de qual é, afinal, sua identidade. A ideia de território perpassa o que se estabelece sobre o mesmo, como simples constituinte do estado, assumindo a configuração do processo de territorialização. Território é, portanto, entendido aqui, como um elemento fruto das relações de poder e sentido, se constituindo, respectivamente, por meio da dominação e por meio de algum tipo de apropriação que pode ocorrer tanto de forma individual como de forma coletiva. A palavra território, etimologicamente, vem do latim territorium que significa pedaço de terra apropriado. O vocábulo latino terra está associado ao significado da palavra território, pois estreita sua ligação com a terra, seja por uma concepção materialista ou idealista (Cf. CRESPO, 2010). Para o entendimento do que propomos, é necessária a distinção entre o que é espaço e território. Para Milton Santos, “o espaço é um verdadeiro campo de forças cuja formação é desigual. Eis a razão pela qual a evolução espacial não se apresenta de igual forma em todos os lugares” (1978, p.122). Nesse contexto, o conceito de espaço é compreendido como um conjunto de formas representativas que englobam as relações sociais do passado e do presente. Além de dar ênfase às estruturas que compreendem as relações presentes na contemporaneidade, manifesta-se por meio de diferentes processos e funções. Milton Santos defende a ideia de que o espaço organizado pelo homem é uma estrutura subordinada/subordinante, como de um resto todas as estruturas sociais. Desse modo, o termo espaço é evidenciado não apenas como um reflexo social, mas como um fator social. O espaço é, portanto, fruto dos processos sociais. Para ele o importante é considerar o espaço como uma totalidade, formado a partir de diversos processos que englobam o passado e o presente das relações realizadas através de funções e formas. Além da esfera social, o espaço compreende a estância humana. Nesse contexto, o espaço social compreende o espaço humano, lugar de vida e trabalho. “A utilização do território pelo povo cria o espaço” (SANTOS,1978, p.145). Esse pensamento representa um dado fixo, no qual o território é considerado imutável em seus limites. Para a constituição deste trabalho, entendemos o território como um elemento construído e desconstruído por diferentes relações de poder e atores envolvidos, no processo de identificação ou negação de suas identidades.

 

METODOLOGIA

 

A pesquisa é eminentemente bibliográfica, baseada nos pressupostos teóricos da teoria literária, das Ciências Sociais e dos Estudos Culturais. A percepção sobre espaço e território será um recurso utilizado para a compreensão da relação de pertencimento ou de negação quanto a um território, por meio das ideias desenvolvidas por Haesbaert e Milton Santos, além das referências sobre questões de identidades e alteridades. Após a leitura do corpus da pesquisa, serão destacados os fragmentos das narrativas, que fazem alusão à multiplicidade cultural e aos conflitos estabelecidos entre a história e a política de um continente explorado pelo processo de colonização e de guerras que provocaram a desorganização de estruturas sociais tradicionais. Depois de selecionados e fichados os estudos de base teórica, que nortearão a pesquisa, será realizada uma análise interdisciplinar das narrativas, destacando o contexto dos sistemas de representações culturais construtores de práticas discursivas que envolvem os países nos quais discorrem as narrativas.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

O sujeito na fronteira do pós-colonial da “modernidade tardia” tende a ser um sujeito em busca de identidades. Por se encontrar em um espaço cultural e temporal de transição, o indivíduo, em especial o sujeito angolano abordado nas narrativas em estudo, é percebido em constante crise, por não identifica-se com si mesmo durante e depois da ebulição da utopia independentista. As incertezas podem ser constatadas, não só na constituição das identidades, mas também na noção de pertencimento e de lar, que antes supostamente confortável, se diluí em detrimento as novas condições sociais do período vivenciado. Esse momento fronteiriço de transição se configura na ruptura da fronteira entre colonizador e colonizado, culminando com a formação da fronteira de classes e interesses entre os cidadãos. Tal momento resultou em uma sociedade composta por indivíduos de identidades díspares e estranhos para si e para os outros. A literatura globalizante de José Eduardo Agualusa ultrapassa fronteiras geográficas, seus personagens se constituem entre o real e o fictício, abarcando versões da história a partir de diversos personagens que constituem o movimento de desterritorialização.

 

 

REFERÊNCIAS

 

AGUALUSA, José Eduardo. Fronteiras perdidas. Lisboa: D. Quixote, 1999.

______. Passageiros em trânsito. Lisboa: D. Quixote, 2009.

BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2013.

CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP, 2003.

CHAVES, Rita (2006). Angola E Moçambique: Experiência Colonial E Territórios Literários. Disponível em: http://bit.ly/MlkV95. Acesso em 20 de julho de 2018.

CHIAPPINI, Lígia. Multiculturalismo e identidade nacional. São Paulo: Revista de Literatura, CULT/46, 2001.  da Modernidade. São Paulo: EDUSP, 2003. Disponível em: http://www.celpcyro.org.br/joomla/index.php?option=com_content&view=article&Itemid=0&id=754. Acesso em 14/01/20018.

CRESPO, Matheus Pepe.  Um estudo sobre o conceito de território na análise geográfica. Anais: ISSN 2179-3263. III encontro de Geografia e VI semana de ciências humanas, Campos dos Goytacazes – R J, IFF, 2010. Disponível em:  http://essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/ENGEO/article/viewFile/1680/863. Acesso em 20 de Julho de 2018.

FIGUEIREDO, Eurídice. Conceitos de Literatura e Cultura. Niterói: EdUFF; Juiz de Fora: EdUFJF, 2012.

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HAESBAERT, Rogério; ARAUJO, F. G. B. (Orgs.). Identidades e Territórios: Questões e Olhares Contemporâneos. 1. ed. Rio de Janeiro: Access, 2007. v. 1.

______. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. 2 ed. rev. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.

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SANTOS, Eloína dos. Pós-colonialismo e pós-colonialidade. In: FIGUEREDO, Eurídice. Conceitos de literatura e cultura. Juiz de Fora: UFJF; Niterói: EDUFF, 2005.

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WALTER, ROLAND. Fronteira e Espaços Fronteiriços Interamericanos. Disponível em <http://www.er.uqam.ca/nobel/gricis/actes/utopie/Walter.pdf>. Acesso em: 09/09/2017.

 

[1] Com base na leitura do que diz Silviano Santiago em seu texto Literatura nos trópicos (2000), entendemos o entrelugar como uma estratégia que possibilita a interação de temas consideráveis, ou até mesmo a introdução de um mesmo tema em conjunto, perspectivas ou situações diferentes.

 José Aldo Ribeiro da Silva


“Enraizerrâncias”: Processos de identificação cultural em Abdulai Sila

José Aldo Ribeiro da Silva

 

Abdulai Sila, primeiro romancista da Guiné-Bissau, é um escritor cujo recente legado dialoga intensamente com a história de seu país. Seus escritos, seguindo uma tendência literária que vem ganhando força nas últimas décadas, revisitam marcos históricos determinantes na trajetória de seu povo, colocando, insistentemente, no centro do território ficcional, as experiências de grupos humanos para os quais as relações de dominação e poder circunscreveram as margens da sociedade. Em virtude disso, suas narrativas possibilitam incursões pelas vivências pretéritas de seu país norteadas por óticas diferentes das que, por muito tempo, predominaram em meio aos discursos oficiais.

O território da Guiné-Bissau, como ressalta Moema Augel (2007: 53), foi inicialmente aproveitado pelos portugueses como um empório comercial e não como uma colônia de assentamento, como foram Angola e Moçambique . Essa situação inicial foi determinante para a ausência de investimentos, por parte do colonizador, no país, que hoje se apresenta como um dos mais pobres do mundo. A situação econômica da Guiné, para além das instabilidades políticas que até hoje a atormentam, conduziu muitos intelectuais ao degredo e fez com que temáticas como migração, exílio, apropriações simbólicas de valores étnicos e negociações identitárias ocupassem lugares proeminentes nas obras que compõem sua literatura.

A obra de Abdulai Sila, composta até o presente momento por três romances – a saber: Eterna Paixão (1994), A Última Tragédia (1995) e Mistida (1997) – e um texto teatral – As Orações de Mansata (2007) –, emerge nesse contexto como uma das mais intensas reflexões sobre as questões identitárias que fazem parte da história bissau-guineense. Promovendo reflexões sobre conflitos, tensões, relações de poder e estratégias de resistência, os universos ficcionais engendrados pelo autor visibilizam os “enraizamentos dinâmicos”, ou “enraizerrâncias” (termos defendidos por Bernd (2011) na esteira de Michel Maffesoli), que tornam possíveis os processos de identificação cultural em contextos nos quais a dominação colonial forjou a imposição violenta de uma cultura sobre outras.

O autor surge no panorama das literaturas de língua portuguesa como um escritor comprometido com a revisão de um passado crivado pelas ações do colonialismo português. Suas narrativas convidam à reflexão sobre a trajetória de guineenses obrigados a se distanciar de suas supostas “raízes” e dão conta das errâncias de seres que se colocam na posição de migrantes em meio às estruturas forjadas pelo colonialismo. O romance A Última Tragédia (1995) é, nesse sentido, um texto elucidativo no conjunto da obra do mencionado intelectual por iluminar transições identitárias inevitáveis em sociedades em que crenças distintas disputam e dividem espaço. Mediante o exposto, é possível concluir que A Última Tragédia apresenta-se como texto privilegiado para a análise de movências identitárias. Migrações forçadas, adaptações inevitáveis e necessidades de negociações de sentidos entre crenças dos povos colonizador e colonizado são alguns dos elementos visibilizados pela narrativa em questão. Ambientados em legítimas “zonas de contato” – isto é, “espaços de encontros coloniais nos quais pessoas geográfica e historicamente separadas entram em contato e estabelecem relações contínuas, geralmente associadas a circunstâncias de coerção, desigualdade radical e obstinada” (PRATT, 1999: 31) –, os acontecimentos narrados, por um lado, revelam marcas das fraturas, negociações, adaptações e renúncias que assinalam as experiências transculturais, por outro, registram movimentos de busca identitária inevitáveis em momentos de crise, conforme assinala Bernd (2011: 17). Sila coloca em cena personagens obrigadas a reformular violentamente seus “territórios” interiores e exteriores, haja vista a premente negociação entre o antigo que não se pode esquecer e o novo que inevitavelmente se apresenta, imposta a todo colonizado.  Diante disso, o objetivo central desta pesquisa é verificar como a escrita de Abdulai Sila representa os processos de identificação em e entre diversos locais, tendo em vista os diálogos interculturais suscitados pelo trânsito de pessoas, ideias e crenças, intensificados em seu país por demandas e conflitos relacionados às intervenções do europeu colonizador.

Capaz de recompor, através dos “atos de recordação” (ASSMANN, 2011) entretecidos em suas estórias, uma história que repensa as relações de dominação e as rupturas e enraizamentos responsáveis pelas diversidades presentes em seu país, o autor reavalia as relações de dominação e evidencia os conflitos enfrentados pelos homens que foram degredados pelas desterritorializações decorrentes da dominação colonial portuguesa. Sua ficção, nesse sentido, desenvolve revisões críticas do passado, por revisitar marcos históricos de seu país, e, conseguintemente, projeções de futuro, por apontar para as incertezas maculadoras da travessia existencial humana e, com isso, apresentar o caráter humano como uma instância sempre em devir. Apresenta-se, pois, como, transescrita (WALTER, 2009: 24, 25, 26, 40, 256), por se mover em espaços fronteiriços, atravessando contextos e experiências culturais desenvolvidas em zonas de contato promotoras de trocas transculturais marcadas por movimentos de apropriação, reapropriação, articulação e rearticulação, visão e revisão (WALTER, 2009: 24- 25). Os gestos mnemônicos encenados em sua narrativa potencializam, assim, uma redefinição da posição do sujeito, mediante uma afirmação da diferença através da qual, como sublinha Roland Walter, “alienação e separação (desterritorialização)” se traduzem em “diversidade cultural em processo (reterritorialização)”, estilhaçando, desse modo, “o sentido estável e unitário do eu” (WALTER, 2009: 24- 25).

 José Antônio de Souza Júnior


VOZES NO EXÍLIO: UMA ABORDAGEM SOBRE NARRADORES E PERSONAGENS EXILADOS NOS ROMANCES DE JOSÉ EDUARDO AGUALUSA

 

José Antônio de Souza Júnior (doutorando UEPB – PPGLI)

Profª. Drª Francisca Zuleide Duarte de Souza (orientadora UEPB – PPGLI)

 

A descolonização de alguns países africanos, que estiveram sob o domínio do império português, acarretou uma série de desdobramentos, dentre os quais podemos citar o nacionalismo literário. Neste período pós-independência, a literatura esteve em sintonia com alguns movimentos políticos e sociais, pois assim como estes se propôs a resgatar as raízes culturais apagadas ou silenciadas durante o período colonial. Nesse sentido, os textos literários nacionalistas, foram utilizados com o objetivo definir uma identidade própria de cada nação africana, em oposição ao colonizador português. No entanto, percebendo a inviabilidade desse projeto identitário essencialista, alguns escritores desenvolveram uma obra literária direcionada a demonstrar o processo histórico e ficcional de construção da identidade cultural de raiz múltipla dos povos africanos. Dentre esses escritores, destacamos José Eduardo Agualusa. Nascido na cidade de Huambo, Angola, em 1960, o escritor é de família brasileira por parte da mãe e portuguesa por parte do pai. Adquiriu, a partir de suas referências culturais, um senso de pertencimento às três Nações: Angola, Brasil e Portugal. Essas nações compõem um mosaico cultural sobre o qual o escritor se sente motivado a escrever. A interligação entre os países forma uma imagem transnacional, que se encontra vinculada ao percurso literário do autor, sendo possível percebermos que a biografia de Agualusa está diretamente relacionada ao seu projeto literário. Começou a publicar no final dos anos oitenta, explorando enredos históricos e de situações de conflitos do período colonial. Surgiu para o grande público, sobretudo, na década de 1990, como um dos nomes de destaque da nova literatura africana em Língua Portuguesa. A sua produção literária ganhou destaque, principalmente, a partir de seus romances históricos que abordam a vida angolana (pré-) e (pós-) colonial. Diante de uma conceituada criação literária, destaca-se, na produção  desse escritor angolano o romance, O vendedor de passados, (2004) obra agraciada, em 2007, com o Prêmio de Ficção Estrangeira concedido anualmente pelo jornal inglês “The Independent”. Além dessa importante obra não se pode deixar de enfatizar outros romances de grande relevância: A Conjura, (1989); Estação das Chuvas, (1996); Nação Crioula: correspondência secreta de Fradique Mendes, (1997); Um Estranho em Goa, (2000); O Ano em que Zumbi Tomou o Rio, (2002); As Mulheres do Meu Pai, (2007); Barroco Tropical, (2009); Milagrário Pessoal, (2010); Teoria geral do Esquecimento, (2012); A educação sentimental dos pássaros, (2012); A vida no céu, (2013); A Rainha Ginga: e de como os africanos inventaram o mundo, (2014) e A Sociedade dos Sonhadores Involuntários, (2017). Neste conjunto de obras literárias, observamos que José Eduardo Agualusa apresenta um projeto literário voltado à interculturalidade, na medida em que personagens e alguns narradores de seus romances são agenciadores de diversas conexões culturais. Isso ocorre devido ao autor estabelecer relações rizomáticas em seus textos, de tal modo que para compreender seu projeto literário não é necessário acompanhar a ordem cronológica de suas publicações, pois cada obra literária pode ser uma porta de acesso ao universo intercultural do autor. Os seus romances, além de proporcionarem uma ligação entre Angola- Brasil-Portugal, estabelecem uma relação entre si, como se cada texto compusesse uma grande narrativa lusófona. Essa peculiaridade, todavia, somente é possível se levarmos em consideração a presença de narradores e personagens exilados, pois estes se constituem em agenciadores do trânsito cultural. Assim, para o desenvolvimento da discussão, a abordagem da seguinte problemática será considerada prioritária: de que forma narradores e personagens exilados agenciam os trânsitos culturais nos romances de José Eduardo Agualusa? Com o intuito de responder a essa problemática, precisamos selecionar alguns romances do autor, para tanto acreditamos que Nação Crioula: correspondência secreta de Fradique Mendes e A Rainha Ginga: e de como os africanos inventaram o mundo serão essenciais a essa abordagem. Nessas obras em foco, Agualusa estabelece uma conexão entre realidade e ficção, ou seja, ele cria um novo sentido para a história de seu país e as relações dessa nação com Portugal e com o Brasil. Nessa perspectiva, o escritor angolano realiza o que Linda Hutcheon denomina de “metaficção historiográfica”, pois assim como A rainha Ginga, o romance Nação Crioula é construído através do diálogo entre literatura e história. Neste romance há uma volta ao passado, não somente com o objetivo de resgate das tradições silenciadas pelo processo colonial, mas principalmente para reconstruir a memória do povo angolano com base no que poderia ter acontecido, sob um viés crítico. Neste retorno ás origens, são abordadas questões referentes ao colonialismo português em Angola, à escravidão no Brasil e ao tráfico negreiro através do Atlântico. Para isso ser viável, o resgate de um personagem criado por Eça de Queirós é de fundamental importância. Este personagem é Fradique Mendes, um homem movido pela busca de emoções e pela vontade de conhecer e entender novas culturas. Ao chegar a Luanda, o Fradique de Agualusa experimenta uma Angola repleta de misturas culturais, onde nativos africanos discutem sofisticadas teorias filosóficas europeias e descendentes de europeus praticam ‘feitiçarias’ medicinais típicas do índio do continente. Essa forma de caracterização da colônia se aproxima do pensamento de Stuart Hall (2003), para quem as diferenças entre a cultura colonizadora e colonizada são profundas, “mas nunca operaram de forma absolutamente binária” (HALL, 2003, p. 108). Assim, o processo colonial teria sido essencialmente “transnacional e transcultural” (HALL, 2003, p. 109). O entrelaçamento cultural do período colonial foi tão intenso que Hall o considera inclusive irreversível, desmentindo ideais nacionalistas de retorno à cultura originária. Isso é confirmado ao observarmos a primeira impressão que Fradique Mendes tem ao desembarcar em Angola, pois fica nítida a típica percepção do viajante europeu desterritorializado: um misto de estranhamento e negação originados da crença na própria superioridade. No entanto, essa crença não resistiu aos primeiros dias do português no continente. Foi, em um primeiro momento, substituída por certa relativização da noção de ‘hierarquia cultural’. Essa postura de Fradique Mendes em defender os angolanos já revela o brotar de um sentimento de pertencimento aquele lugar que começava a encantá-lo. Esse pertencimento, por sua vez, significava que o personagem português estava mergulhado em um processo de reterritorialização. Este processo consiste em uma readaptação com novas ressignificações e redimensionamento dos seus comportamentos, trazendo consigo novas formas, identidades e configurações. No entanto, segundo Haesbaert e Bruce (2002) não se deve confundir a reterritorialização com o retorno a uma territorialidade primitiva ou mais antiga. Isso acontece quando Fradique Mendes começa a conhecer e compreender a Angola com todas as suas peculiaridades e tradições, pois ele deixa de comparar, negativamente, esse território em relação a Portugal. Diante disso, verificamos a viabilidade dessa análise do romance Nação crioula, pois nesta obra observamos que o processo de reterritorialização, contribui de forma significativa para a mixagem cultural. Isso acontece porque a partir do borramento das fronteiras culturais, claramente demostrada no texto de Agualusa, há o entrelaçamento das variadas culturas. Esse aspecto, todavia, denota uma ótica construtiva diferenciada, ao suscitar, a partir da criação literária, a existência de um diálogo intercultural entre os três países: Angola, Brasil e Portugal. Entretanto, essa característica não se restringe a Nação Crioula, pois em outras obras literária há o mesmo processo de diluição de fronteiras e a relação de trânsito cultural. É o que verificamos em A rainha Ginga – e de como os africanos inventaram o mundo. Nesta narrativa, Agualusa propõe reconstruir ficcionalmente um passado histórico angolano. Para tanto ele destaca em seu romance os atos polêmicos e irreverentes de Ana de Sousa, a rainha Ginga. Para realizar essa abordagem, o autor escolhe em seu texto um narrador brasileiro, o padre Francisco José da Santa Cruz. Esse padre deixa Olinda-PE, sua terra natal, em um navio negreiro com destino a São Salvador do Congo, para ingressar como noviço na companhia de Jesus. Após aproximadamente nove meses de sua chegada ele descobre que a senhora Dona Ginga, irmã do rei do Dongo estava precisando de um secretário. Decepcionado com a vida reclusa, o noviço solicita ao bispo a permissão para ser o auxiliar de Ginga, que se tornaria rainha após a morte de seu irmão. A função de secretário deveria ser exercida principalmente para suprir uma carência no reino Dongo, a de pessoas letradas no idioma português. Isso era importante, pois para haver comunicação oficial com o governador português, Luís Mendes de Vasconcelos, era necessário ter “alguém ilustrado na ciência de desenhar palavras” (AGUALUSA, 2015, p 11). Ao se apresentar a Ginga, houve um processo de estranhamento, pois ela estava esperando uma pessoa totalmente diferente em relação às características físicas do padre. Esse estranhamento se dá pelo fato do padre ser um mestiço, fruto da união entre uma índia da nação caeté e um mulato, portanto, ele é um típico representante da diversidade étnica brasileira. De modo geral o romance centra a sua trama na vida aventureira do padre exilado. Inicialmente ele representa o olhar do colonizador, pois além de ser um estrangeiro em terras angolanas, era um representante da igreja católica. Porém, com o desenrolar da narrativa observamos que a relação de Francisco José da Santa Cruz com os outros personagens e com o próprio espaço geográfico afeta  diretamente as suas mais arraigadas certezas e verdades. Tornando-o, gradativamente, um ser desterritorializado, em relação a sua terra natal e, paralelamente, um sujeito reterritorializado em Angola. Esses processos vivenciados pelo narrador, entretanto, representam a própria situação em que se encontrava a angola, invadida e habitada por pessoas de diversas partes do mundo. De modo geral, nesse romance observamos que ao reconstituir ficcionalmente as façanhas e atitudes da rainha Ginga, o autor reforça mais uma vez o seu projeto literário de borramento das fronteiras culturais no tocante à relação entre os espaços na narrativa, denotando mais uma vez a existência de um diálogo intercultural entre os três países: Angola, Brasil e Portugal. A partir dessa abordagem, definimos como objetivo geral desta tese demonstrar de que forma narradores e personagens, que se encontram na condição de exilados, nos romances Nação crioula e A rainha Ginga de José Eduardo Agualusa, são agenciadores das conexões culturais. A princípio, podemos afirmar que esses narradores e esses personagens, agenciam os trânsitos culturais, na medida em que são afetados pelos processos de desterritorialização e reterritorialização. Diante dessas reflexões, defendemos nesta tese de doutorado que José Eduardo Agualusa desenvolve uma obra literária rizomática, na medida em que desestabiliza o pensamento dicotômico. Essa iniciativa do autor se justifica pelo fato dele não acreditar que possa existir no mundo de hoje alguma cultura pura. Por isso, ao invés de destacar uma cultura essecialmente livre de influências, ele demonstra os intensos contatos e relações que afirmam o caráter múltiplo dos territórios por ele frequentados. Esse intenso trânsito cultural, por sua vez, não pode ser analisado apenas como um instrumento de ruptura com o “binarismo” cultural do colonizador-colonizado, mas representa também uma forma de resistência/reterritorialização às vezes bastante rica, recriando, pela mistura, novas formas de construção identitário-territorial. Para fundamentar essa discussão são fundamentais as contribuições de: APPIAH, (1997); BHABHA, (2003); CANCLINI, (1997); CHAVES, (2005); DELEUZE, G., GUATTARI, F.; (1995); GILROY, (2008); GLISSANT, (2005); HAESBAERT, R. e BRUCE, G., (2002); HALL, (2003); HUTCHEON, (1991); MATA, (2007); PRATT, (1999); SAID, (2004), entre outros. Esses e outros teóricos serão indispensáveis às abordagens teóricas suscitadas ao longo dos quatros capítulos da tese. No primeiro, apresentaremos um mapeamento sucinto dos estudos que envolvem Literatura, História e Memória. Ainda neste contexto, iremos explicitar a íntima relação entre a vida e a obra de José Eduardo Agualusa, demonstrando de que forma a sua vida nômade tem afetado a sua produção literária. No segundo iremos nos dedicar a discutir como ocorreram os processos de colonização, descolonização e pós-colonização do território angolano e de como esses processos são abordados por Agualusa em sua produção romanesca, sobretudo nos dois romances em estudo. Já o terceiro capítulo se dedicará a uma análise dos romances em destaque nesta tese, destacando nestas narrativas ficcionais a crioulização, o hibridismo cultural, a mestiçagem e a antropofagia. Por fim, o quarto capítulo se destinará a analisar a diáspora, o exílio, a desterritorialização e a reterritorialização nos romances: Nação Crioula: correspondência secreta de Fradique Mendes e A Rainha Ginga: e de como os africanos inventaram o mundo.

Palavras-chave: Literatura angolana. Nação Crioula. A rainha Ginga. José Eduardo Agualusa.

 Kyssia Rafaela Almeida Pinto


POÉTICA DA NARRATIVA: MUITO ALÉM D O GÊNERO PELO GÊNERO, UMA ANÁLISE DA PRODUÇÃO FEMININA DE CRÔNICAS

Kyssia Rafaela Almeida Pinto – Doutoranda

Orientador: Dr. Antônio de Pádua Dias da SILVA

A literatura feminina, identificada no início do século XX como fruto da intuição, do improviso e da espontaneidade estava em contraste com o engenho, a técnica e o talento, que seriam atributos masculinos, já que o espaço privado de predomínio do afetivo estaria para o universo feminino, enquanto o público, no qual predominaria o intelectual, estaria relacionado a produção masculina.

Assim, durante muito tempo a literatura feminina foi percebida e desqualificada como produto circunstancial, manifestação de um capricho, esforço inútil ou simples perda de tempo. As condições sócio-históricas que produziram essa hierarquização, em que as mulheres eram reduzidas à condição de esposas e donas de casa, reduziram a avaliação de suas obras a uma perspectiva tendenciosa que desqualifica tal produção, identificando como mais ligada a uma cultura popular e subalterna, em contraste com nichos de excelência sempre ocupados por homens brancos e heterossexuais.

Nesse sentido, o objetivo dos debates, empreendidos pela Crítica Feminista, acerca do espaço relegado à mulher na sociedade, bem como das consequências, ou dos reflexos daí advindos, para o âmbito literário, são de grande relevância para os Estudos Culturais e Literários, nosso campo teórico nesse estudo. Trata-se de tentar romper com os discursos sacralizados pela tradição, nos quais a mulher ocupa, à sua revelia, um lugar secundário em relação ao lugar ocupado pelo homem, marcado pela marginalidade, pela submissão e pela resignação.

Tais discursos não só interferem no cotidiano feminino, mas também acabam por fundamentar os cânones críticos e teóricos tradicionais e masculinos que regem o saber sobre a literatura.

As discussões que envolvem o tema “mulher e literatura” têm conseguido ocupar um espaço bastante relevante no meio acadêmico nas últimas décadas: muitas são as obras publicadas sobre o assunto, não apenas nos países considerados berços dos estudos feministas, como França, Inglaterra e Estados Unidos, mas também no Brasil; muitos são os seminários que reúnem anualmente especialistas e simpatizantes dessa linha de pesquisa; e cada vez é maior o número de teses, dissertações, artigos e monografias que se dedicam ao tema.

Tendo detectado o fato de que a mulher sempre fora produtora de uma literatura própria, embora esta tenha permanecido por tanto tempo no limbo, críticos(as) feministas, ao desempenharem a função de fazê-la emergir, reinterpretando-a e revisando os mecanismos dos pressupostos teóricos que a marginalizaram, com o objetivo de descrevê-la, dando a conhecer suas marcas, suas peculiaridades em cada época específica.

Noutras palavras, elas construíram sua tradição literária (que não é absolutamente inata ao sexo biológico) a partir das relações, ainda em desenvolvimento, travadas com a sociedade maior em que se inserem. E tendo em vista todas essas nuances apresentadas até aqui, que questionam os ditames que regeram a produção e crítica literária durante séculos, que desejamos desenvolver o nosso estudo que visa analisar a produção de crônicas femininas na contemporaneidade.

Para o embasamento teórico deste trabalho estamos realizando o aprofundamento de nossas pesquisas e leituras, mas alguns teóricos se constituem como relevantes e vem norteando nossa discussão. O cenário literário pós-autônomo que se constrói de acordo com Josefina Ludmer (2007), é um dos elementos bases de nosso projeto que visa questionar as fronteiras impostas pelo cânone e os teóricos literários na formulação e classificação dos gêneros literários que mantiveram os estudos literários “amarrados” a padrões e conceitos que não são capazes de definir a produção contemporânea, como é defendido por Luciano Barbosa Justino (2014), Antônio de Pádua Dias da Silva (2016) ou ainda por Marcia Abreu (2006) em Cultura letrada: literatura e leitura. No que concerne aos estudos de gênero, utilizaremos inicialmente as contribuições de Louro (2008) e Schneider (2006).

Para a discussão em relação ao gênero literário aqui analisado e a construção do cânone nos embasaremos em Harold Bloom (1995) em Elegia para o Canône e Hermenegildo Bastos (2011); além de teóricos como Coutinho (2008), Massaud Moisés (2004) Alfredo Bosi (1994), Antônio Candido (2007) e Compagnon (2001). No que se refere a um estudo mais especifico do gênero crônica, suas características e especificidades, utilizaremos os estudo de Sá (2001), Costa (2005) além de trabalhos como o de Maria Cristina Ribas em artigo publicado nos Anais do XIII ABRALIC intitulado, Por uma revisão conceitual do gênero crônica: entre a montanha e o rés do chão.

No que concerne ao objeto de estudo do nosso trabalho, selecionamos o gênero crônica, por entender que este consegue representar de forma bastante simbólica as necessidades elencadas como norteadoras deste estudo, pois valendo-nos de uma expressão de Sá (2001, p. 7), a crônica seria “o registro do circunstancial”. Desse modo podemos acreditar que a crônica não se produz em uma única direção ou vertente, daí a existência de uma tipologia trabalhada por alguns autores e as definições de crônica serem múltiplas.

A crônica é, sem dúvida, um dos gêneros mais populares da literatura brasileira, com tradição de grandes autores e, consequentemente, muitos leitores. A tentativa de compreensão sobre este gênero passa por alguns caminhos, como a definição de seus suportes, o modo diferenciado com que confronta o limite do literário e o mercadológico, sua representação do espaço local do autor dentro do texto, além da intencionalidade clara de dialogar com um leitor que seja inteiramente inserido no tempo presente.

A intenção deste estudo, então, é trazer algumas hipóteses de reflexão para a crônica contemporânea brasileira, mas especificamente a crônica produzida por mulheres. Levando em consideração algumas perspectivas: a primeira, discutirá o “espaço” no qual é produzida atualmente, tanto no suporte impresso quanto no suporte digital; muitos textos hoje “nascem e morrem” no ambiente virtual. A segunda, entrará na discussão da escrita feminina, quais os elementos que podem caracterizar essa produção? Porque essa escrita foi silenciada durante tanto tempo? A terceira, busca analisar, partindo do pressuposto de que a crônica usa a questão do recorte local de seu autor, como uma de suas bases conceituais; quais as nuances que marcam a produção de crônicas na contemporaneidade, ou melhor, a produção de crônicas escritas por mulheres na atualidade.

Desta forma, alguns conceitos nortearão nosso trabalho: 1) noções de gênero, discutidas em confronto com a noção de essencialidade da mulher; 2) noções de representação literária, de autoria e de leitor/leitora; 3) noção do cânone literário e crítico, discutindo a legitimidade do que é, ou não, considerado literário e de qualidade estética e por fim, 4) conceito de crônica, continua o mesmo desde as primeiras produções, existiu uma reformulação deste termo, ou será possível construir um novo conceito que consiga absorver a multiplicidade da produção contemporânea.

Para que este exercício interpretativo se torne completo, colocaremos em prática todas as discussões levantadas a partir da análise de um conjunto de crônicas, composto pelos três livros selecionados como corpus de análise deste trabalho. Trata-se da trilogia: Paixão crônica, Liberdade crônica e Felicidade crônica, da autora contemporânea Martha Medeiros, um dos nomes mais representativos do gênero na atualidade.

Portanto, a ideia principal da tese é demonstrar que a crônica, representa um excelente modo de compreender, de maneira dinâmica e complexa, as situações e concepções que formam sua época, afinal, não existe gênero que se alimente mais do tempo presente do que a crônica, assim como evidenciar a significativa produção feminina no cenário nacional, buscando perceber as nuances que caracterizam essa escrita.

No que concerne ao estágio da nossa pesquisa, realizamos a escrita de um capítulo equivalente a introdução do trabalho, que já foi encaminhado e discutido com o orientador. No momento, estamos organizando a esquematização dos demais capítulos com a leitura do corpus e aprofundamento da fundamentação teórica, por meio de pesquisas bibliográficas e leituras complementares.

Desejamos organizar a tese da seguinte forma: a introdução, que já foi iniciada; um capítulo teórico, no qual revisitaremos a fortuna crítica no que concerne a conceituação do gênero crônica; um capítulo de análise, o qual subdividiremos em três partes, uma para cada obra estudada, e o último de conclusão do trabalho. No momento, estamos debruçados na construção do capítulo teórico que deverá ser entregue até o início do próximo ano ao orientador. Enquanto o capítulo de análise será produzido em meados de 2019, momento no qual, desejamos nos preparar para a qualificação e conclusão da escrita da tese até o término deste mesmo ano, para que no ano seguinte, 2020, realizemos a defesa final da tese.

De qualquer modo, seja representando a mulher como seres oprimidos, atados às amarras de ideologias, como a patriarcal, que subjugam o sexo feminino, seja a representando como figuras engajadas no processo de transformação social, reivindicando o direito de preservação da identidade, seja, enfim, representando mulheres liberadas, capazes de decidir o rumo que desejam imprimir à própria história, o fato é que a tradição da literatura de autoria feminina vem se consolidando no Brasil.

Graças aos estudos de gênero, de modo especial, à critica literária feminista, os posicionamentos críticos tradicionais que costumavam rotular os textos de autoria feminina como sendo “coisas de mulher”, “futilidades”, “amenidades”, ou coisa assim, perderam credibilidade. A mulher escritora tem, finalmente, seu trabalho reconhecido no meio acadêmico, hoje, consciente de que o valor estético da literatura canônica não reside apenas no próprio texto, mas em fatores marcados por preconceitos de cor, de raça, de classe social e de sexo, construídos em consonância com os valores da ideologia patriarcal que ainda regem a nossa cultura.

 Maria Aparecida Nascimento de Almeida


NTRE SONHO E REALIDADE: A MULTIPLICIDADE DE PERFIS DA MULHER SUBALTERNIZADA NA OBRA DE LÍLIA MOMPLÉ

Maria Aparecida Nascimento de Almeida (Doutoranda / UEPB / PPGLI)

Profª Drª Rosilda Bezerra Alves (Orientadora / UEPB / PPGLI)

 

RESUMO

INTRODUÇÃO – A partir da segunda metade do século XX movimentos de cunho feminista fizeram emergir, no mundo ocidental, o interesse pelos estudos relacionados a misoginia como um conceito construído por mecanismos socioculturais. Assim como outras áreas do conhecimento a literatura não ficou alheia as discussões. De forma que a subalternização feminina se tornou foco de pesquisas, cujos objetivos são investigar as relações de gênero em diversos contextos histórico-sociais por meio da ficção. Contudo, Fábio Mario da Silva, ao apresentar a obra O Feminino nas Literaturas Africanas em Língua Portuguesa, adverte, apesar do crescente debate o tema deve ser abordado, no que toca a produção literária em África, sob uma ótica diferenciada a fim de evitar incongruência, uma vez que “[…] a relação do corpo com as mulheres, no contexto africano, teria uma outra dinâmica”. (SILVA, 2014, n.p.) A incompatibilidade entre conceitos e teorias eurocêntricas e os estudos literários africanos é constantemente destacada pelos pesquisadores da área, porém, a informação subsequente apresenta um vocábulo chave para compreensão da relação de subordinação que a mulher é obrigada a estabelecer com o próprio corpo, no continente. Trata-se da palavra dinâmica, a qual pode sugerir conformidade com preceitos culturais ou ainda remeter a movimento e forças. Para fins deste estudo relacionamos a dinâmica, destacada por Silva (2014, n.p.), a situação dos “corpos femininos” postos em movimento por influência de forças hostis que impulsionam ou modificam suas ações, impedindo às mulheres de procederem segundo as próprias convicções, vetando as subjetividades e mecanizando seus comportamentos. Neste contexto atos e palavras tendem a ser controlados, mas, se há personagens que experimentam um profundo desânimo, registra-se a postura dos seres ficcionais que se permitem sonhar. Na ficção é possível verificar essa proposição por meio da divergência entre pensamentos, palavras e atos de personagens femininas que figuram na literatura africana de língua portuguesa. No entanto, a reflexão acerca da persistência feminina pressupõe um recorte temático, pois ampliar as discussões as nações lusófonas além de pretensão seria desconsiderar as peculiaridades de cada país. Assim propõe-se, na tese, reflexões acerca da literatura moçambicana, de forma específica, das obras de Lília Momplé: Ninguém matou Suhura, Os olhos da cobra verde e Neighbours, nas quais verifica-se a subordinação de personagens femininas, sejam protagonistas ou secundárias. A minuciosa descrição psicológica permite analisar a subjetividade, constatando as agruras do “ser” feminino em diferentes épocas, bem como oportuniza sondar as perspectivas futuras em meio às adversidades.

OBJETIVOS – Pretende-se, assim, apresentar os perfis das mulheres subalternizadas traçados em uma escrita que não se pretende feminina nem feminista, como afirma a autora “[…] a minha escrita não é conscienciosamente feminina […] Deve ter havido qualquer mecanismo inconsciente que favoreceu a mulher naquilo que escrevo”. (MOMPLÉ, 2012, p. 13). Nega-se, portanto, uma perspectiva reivindicativa, apesar de Lília Momplé afirmar ter a escrita um papel social e assumir que todas as suas obras foram escritas não apenas pelo prazer, constituindo-se a produção literária uma forma libertária de cargas emocionais negativas.

JUSTIFICATIVA – A contradição apontada levanta o questionamento estaria a hesitação, da escritora, em definir os perfis de suas personagens femininas, relacionada a situação da mulher, na atual configuração social moçambicana? Na esteira dessa indagação expomos aspectos a serem investigados ao longo da escrita da tese defendida, dentre eles: por que Lília Momplé afirma não ser do tipo de mulher reivindicativa ou feminista, apesar de confessar ser a sua obra baseada na realidade da mulher moçambicana e reconhecer que esta é sofrida? Como às personagens femininas interpretam o “ser” e “estar” mulher em Moçambique? Podem estas personagens influenciar a construção identitária das mulheres moçambicanas? Quais mecanismos favorecem “o ser” feminino na escrita de Lília Momplé? Como portam-se protagonistas e personagens secundárias ao longo das décadas ficcionalizadas por Lília Momplé? Houve transformação no que toca a situação da mulher no período colonial, destacado na antologia Nínguém matou Suhura; pós-colonial, evidenciado por meio dos contos que compõem a coletânea de Os olhos da cobra verde, e neocolonial, enfatizado na novela Neighbours? A qual retrata a asfixiante intervenção sul-africana em Moçambique no período do apartheid.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA – Esses questionamentos despertaram o interesse em produzir um trabalho que revele não apenas as humilhações impostas às personagens femininas, mas também a coragem e poder de superação daquelas que optaram por se rebelar em prol de um ideal, ousando sonhar em meio caos instaurado em uma sociedade, onde a mulher é multiplamente subjugada por questões raciais, sociais, culturais, educacionais e sexuais, conforme observado ao longo da obra de Lília Momplé. A problemática apresentada também visibiliza a mulher escritora, cuja voz permanece à margem de sistemas literários que privilegiam a publicação de obras escritas por homens. Embora haja hesitação da autora em definir seus textos como “arte de protesto”, tal constatação denota a legitimidade de reivindicar a igualdade de direitos seja no plano real ou ficcional. Que as personagens mulheres de Lília Momplé são sofridas é uma constatação, evidenciada pela própria escritora em entrevista concedida a Revista Literatas (2012, p. 13). Embora evite refletir, criticamente, sobre a sua obra a autora corroborou uma tese defendida a esse respeito e acrescentou “[…] Toda a minha obra é baseada na realidade, e a mulher moçambicana é sofrida, é natural que ela apareça como sofrida. Gostaria que apareçam mais mulheres a escrever o outro lado.” No entanto, observamos ao longo da produção literária de Lília Momplé a abordagem deste “outro lado”. É bem verdade que as personagens femininas que habitam as obras de Lília Momplé são, em sua maioria, marginalizadas, porém a mera intenção de ascender socialmente ou dispor de condições igualitárias é o suficiente para perseguição e demonstração do autoritarismo patriarcal que gere a instância cultural no país. Tais informações são pertinentes a abordagem proposta por ilustrar o contexto de subalternização da mulher. De forma que Afonso (2004), Cabaço (2009), Alós (2011-2013), Capela (2010), Duarte (2005-2012) Carvalho (2009), Fleck (2010), Ferreira (2000), Fanon (1968), Gobbi (2011), Hamilton (1999), Hernandez (2008), Leite (2012-2013), Mata (1994-2007-2009), Martinez (2008), Padilha (2007-2011), Newitt (1997), Thomaz (2005), Visentini (2014) e Zamparoni (2004-2006) são fundamentais a compreensão da conjuntura de Moçambique durante a colonização e descolonização. Acrescente-se ao referencial supracitado as pesquisas acerca do “ser” feminino em África, das personagens-mulheres de Lília Momplé e da literatura moçambicana, dentre as quais destacamos às contribuições de Abdala Jr. (2010), Almeida (2002), Badinter (2005), Bonnici (2011), Butler (2008); Fonseca (2008-2012), Hall (2003-2006), Bhabha (1998), Appiah (1997), Leão (2003), Macedo (2003), Martinho (1999), Pereira (2010), Salgado (2010), Secco (2010-2012), Silva (2014), Sohat e Stam (2006), Tutikian (2006) e Spivak (2010).

METODOLOGIA – A descrição das etapas ressalta a configuração bibliográfica e analítica da tese. De sorte que livros, periódicos científicos, impressos ou online, entrevistas, monografias, dissertações e teses podem constituir-se suporte de investigação, desde que apresentem abordagens significativas para a pesquisa que se desenvolve a partir do levantamento completo e leitura da bibliografia:  específica do corpus e teórica, com vistas a definição do referencial epistemológico. A revisão de literatura sobre a temática e análise das obras constituem a próxima etapa. Por fim, articular-se-á os contos e a novela com a teoria e crítica literárias, registrando às conclusões que resultarão na tese.

CONCLUSÃO – Em meio a diversas formas de subordinação, impostas ao “ser” feminino, emerge o direito de sonhar como fuga da realidade e incentivo à luta, pois às personagens precisam enfrentar forças opressoras com características distintas. Em um primeiro momento tornam-se alvo de um poder intercontinental, representado pelos colonizadores portugueses, na sequência da independência são afetadas pela tirania de poderes opostos nacionais, e novamente atingidas por práticas degradantes exercidas pelo poder continental dos sul-africanos. No contexto descrito torna-se oportuno o retórico questionamento de Spiwak (2010) Pode o subalterno falar? Verificamos que às dificuldades são ampliadas se a indagação for “Podem às mulheres subalternizadas falar?” Dois fatores merecem destaque nas construções interrogativas, subalternização não é condição, mas, imposição; quanto ao direito de expressão observa-se no decorrer da produção literária de Lília Momplé momentos de silenciamento, resignação e contestação por pensamento, palavras e atos. Às vozes narrativas oniscientes permitem conhecer os sofrimentos passados, verificar a presente realidade e sondar os desejos para o futuro. O foco analítico proposto situa-se entre a subalternização e a superação. De forma que é pertinente interpelar “Podem às mulheres subalternizadas sonhar?” Há perfis femininos nas obras de Lília Momplé que sinalizam para uma resposta positiva, porém, resultados contundentes serão apresentados apenas na conclusão da pesquisa, a qual evidenciará o percurso trilhando pelas personagens mulheres da realidade ao sonho.

REFERÊNCIAS

AFONSO, Maria Fernanda. O conto moçambicano: escritas pós-coloniais. Lisboa:  Caminho, 2004.

BADINTER, Elizabeth. Rumo equivocado – o feminismo e alguns destinos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008

CABAÇO, José Luís. Moçambique: identidade, colonialismo e libertação. São Paulo: UNESP, 2009.

MARTINHO, Ana Maria Mão-de-Ferro (Org.). A Mulher Escritora em África e na América Latina. Évora: NUM, 1999.

MATA, Inocência. As vozes femininas na literatura africana: passado e presente – Representações da mulher na produção literária de mulheres. Anais do Congresso O rosto feminino da expansão portuguesa. Lisboa, 1994.

MATA, Inocência. PADILHA, Laura Cavalcante. A mulher em África: Vozes de uma margem sempre presente. Lisboa: Colibri/Centro de Estudos Africanos, FLUL, 2007.

MOMPLÉ, Lilia. Entrevista. In: Literatas – Revista de Literatura Moçambicana e Lusófona, ago. 2012. Disponível em: < http://revistaliteratas.blogspot.com.br> Acesso em: 17 fev. 2016.

MOMPLÉ, Lília. Ninguém matou Suhura: estórias que ilustram a história. Maputo: AEMO, 2009.

MOMPLÉ, Lília. Os olhos da cobra verde. Maputo: AEMO, 2008.

MOMPLÉ, Lília. Neighbours. Porto: Porto Editora, 2012.

SILVA, Fabio Mario da (Org.). O Feminino nas Literaturas Africanas em Língua Portuguesa. 1. ed. Lisboa: CLEPUL – Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, Faculdade de Letras de Lisboa. 2014.v.1. 247p. e-book.

 Maria Rennally Soares da Silva


A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DE ASSIA DJEBAR NO ENTRELUGAR

LITERÁRIO FRANCO-ÁRABE, EM QUATRO ROMANCES

 

Doutoranda: Maria Rennally Soares da Silva

Orientadora: Francisca Zuleide Duarte de Souza

 

Na contemporaneidade, as literaturas pós-coloniais consistem em formas de superar as subordinações pela qual os povos culturalmente híbridos passaram (PEREIRA; SOUZA, 2016), narrando histórias diferentes das que são contadas pelo domínio imperialista, em busca de resistir, preservar e resguardar os valores culturais de origem. Além disso, é comum encontrarmos nas literaturas pós-coloniais de expressão francesa, obras autobiográficas narrando histórias de personagens que trazem as características culturais de duplicidade e de ambiguidade que revelam o hibridismo identitário de que fala Homi Bhabha (2005) em seus estudos.

No contexto da colonização de países africanos temos a Argélia, cujo povo foi massacrado e explorado pela França. O povo argelino, que havia sido derrotado pelo seu colonizador, encontrou, na expressão literária, uma forma de não silenciar diante da subordinação à qual foi submetido. Neste âmbito literário magrebino, vimos há alguns anos, lendo e estudando a obra da escritora argelina Fatima Zohra Imalayène (1936-2015) que, tendo adotado o pseudônimo de Assia Djebar, realizou uma vasta obra que compreende desde romances, novelas, poemas, ensaios até peças de teatro e cinema, adotando como tema central de suas produções a emancipação feminina e a situação conflituosa da Argélia à época da colonização.

Assim, nesta pesquisa, temos como objetivo geral: identificar como se revela a construção identitária franco-árabe da escritora argelina Assia Djebar em sua produção literária, através da análise de quatro de suas obras, a saber: La soïf (1957), L’amour, la Fantasia (1985), Ces voix qui m’assiègent (1999), e Nulle part dans la maison de mon père (2007).

Assim, a percepção da problemática de uma dicotomia identitária franco-árabe na produção literária de Assia Djebar nos levou a nos indagar: como esta dupla identidade cultural se revela em sua obra e, de modo particular, nos romances supramencionados? A nossa hipótese, para responder a esse questionamento e a alguns outros, é a de que as rupturas causadas pelo processo de colonização fragmentaram a identidade cultural da escritora Assia Djebar em duas partes. Assim, levantamos a tese de que tais rupturas a colocaram no entrelugar literário franco-árabe e a levaram a utilizar a língua do colonizador para fazer ouvir a si mesma e, consequentemente, a sua nação, através da sua produção literária.

A respeito da metodologia adotada, classificamos esta pesquisa como uma investigação bibliográfica, visto que buscamos compreender como a dupla identidade cultural da escritora argelina Assia Djebar se revela em sua produção literária. Temos como corpus a ser analisado à luz dos fundamentos teórico-metodológicos, excertos de quatro obras da referida escritora, a saber: La soïf (1957), L’amour, la Fantasia (1985), Ces voix qui m’assiègent (1999), e Nulle part dans la maison de mon père (2007). Para o desenvolvimento desta pesquisa, em um primeiro momento estamos realizando releituras das obras em análise e traçando um perfil da escritora Assia Djebar a partir dos elementos autobiográficos encontrados nos romances supracitados. Posteriormente selecionaremos os excertos a serem analisados e buscaremos alcançar os objetivos pretendidos (geral e específicos).

Sobre essa autora, destacamos que a maior parte dos seus romances são de cunho autobiográfico (SOARES, 1990) e que Assia Djebar é tida como uma das mais influentes personalidades da literatura feminina do Magrebe, uma verdadeira porta-voz da mulher diante do silêncio ao qual foi condicionada a mulher magrebina através da literatura. Exilada na França durante alguns anos e, posteriormente, transitando entre Paris e a Argélia, através da literatura, Assia Djebar narra a si mesma e à sua nação de forma dicotômica, ao tempo em que não consegue expressar as suas mais afetivas lembranças em língua francesa, pois esta é a língua do colonizador, Djebar precisa desta língua para contar a sua história e a do seu país, removendo tanto a mulher árabe, quando a Argélia, do lugar de silenciamento ao qual ambas foram condicionadas (SILVA, 2017).

Este projeto, temos como fundamentos teóricos algumas reflexões acerca da literatura enquanto um espaço de afirmação e de reconstrução identitária no contexto magrebino (COMBE, 2010), tendo as literaturas pós-coloniais de determinados autores como o berço deste processo. Logo, temos como apoio teórico as reflexões de Edward Said (2007) no que concerne aos estudos pós-coloniais, bem como aos estudos de Frantz Fanon (2008), a respeito das formas de exploração e de subalternização.

Também temos como base teórica Stuart Hall (2003), no que se refere às questões do hibridismo identitário cultural das personagens e da autora em estudo e Hommi Bhabha (2005) com relação à hibridização cultural pela qual passou Assia Djebar. A partir de tais reflexões, situaremos a escritora argelina Assia Djebar, cuja obra literária se constitui no objeto de estudo de nossa pesquisa, apontando-a como uma escritora que permanece no entrelugar literário franco-árabe, situada no locus do desexílio apontado por Benedetti (1999), utilizando-se da língua francesa para narrar a si mesma e à sua nação (BHABHA, 2005).

Temos como resultados parciais desta pesquisa (ainda inicial), indícios de que a escritora argelina Assia Djebar, desde criança, teve a sua subjetividade marcada por uma dicotomia cultural que dividia a sua identidade em duas partes. Essa cisão identitária manifestou-se em toda a sua obra e a levou a viver entre os universos francês e árabe. Exilada na França durante alguns anos e, depois, entre idas e vindas entre a França e a Argélia, Assia Djebar narrou a si mesma e, consequentemente a sua nação, através da vasta obra literária que produziu, residindo no entrelugar franco-árabe onde estava condicionada a estar, a partir da identidade cultural que construiu ao longo da sua trajetória.

 

REFERÊNCIAS

 

BHABHA, H. K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.

COMBE, D. Les littératures francophones – questions, débats, polemiques. Presses Universitaires de France. Paris, 2010.

DJEBAR, A. La Soif. Paris: Julliard, 1957.

____ . Ces voix qui m’assiègent… en marge de ma francophonie. Paris : Albin Michel, 1999.

____ . L’amour, la Fantasia. Paris : Albin Michel, 1985.

____ . Nulle part dans la maison de mon père. Paris: Fayard, 2007.

FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Trad. de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 7.ed. Rio de janeiro: Dp&Z, 2003.

PEREIRA, K. R. W.; SOUZA, F. Z. D. Diáspora, exílio e memória nas literaturas africanas em Língua Portuguesa. Assis: Revista Miscelânea, 2016.

RAMALHO, Y. A. O exílio no romance ‘Primavera con una esquina rota de Mario Benedetti’. 2013. 72 p. Dissertação de mestrado – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Programa de Pós-graduação em estudos da linguagem.

SAID, EDWARD W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das letras, 2007.

SILVA, M. R. S. ‘L’amour, la Fantasia’, de Assia Djebar: a literatura em aula de FLE como lugar de resistência feminina. 2017. 200 f. Dissertação (Mestrado em Linguagem e Ensino) – Universidade Federal de Campina Grande – UFCG. Campina Grande. 2017.

SOARES, V. L. A situação linguística e a literatura de expressão francesa no Maghreb. Revista Fragmentos, Florianópolis: UFSC, 1990.

 Mylena Queiroz 


AS NUANÇAS DO MAL NA OBRA DE GUIMARÃES ROSA

 

Mylena Queiroz (PPGLI-UEPB)

(Orientador: Antônio Carlos de Melo Magalhães)

 

A pesquisa a que nos propomos intenta mostrar como a literatura reflete, refrata e problematiza as nuanças do mal: que aqui será analisado a partir da produção contística e cronística de João Guimarães Rosa, escritor mineiro autor de Grande Sertão: Veredas (1956), e se desenvolverá em torno das obras Primeiras Estórias (1962), Tutameia (1967) e Ave, Palavra (1970), sendo esta última uma miscelânea que reúne narrativas como as publicadas inicialmente no Correio da Manhã, O mau humor de Wotan (1948) e A senhora dos segredos (1952); e no jornal O globo, A velha (1961). Nas chamadas crônicas de guerra do autor, narrativas que integram obra que ainda aguarda maior atenção, o cenário comum do período de domínio de Hitler se faz evidente. Na pesquisa A imagem da Alemanha em Guimarães Rosa como retrato auto-irônico, o autor Paulo Astor Soethe sugere que alusões à própria bibliografia de Guimarães integram as produções, sendo esta uma chave de interpretação para tais narrativas, bem como para a apresentação do posicionamento do escritor frente ao contexto sócio-histórico tanto brasileiro como alemão na época da Segunda Guerra Mundial. A atuação de Guimarães Rosa enquanto vice-cônsul da embaixada brasileira na Alemanha (1938-1942) se deu justamente no período em que o Estado Nazista começava a perder espaço e força, cabendo, para Soethe, uma interpretação de que os contos apresentam o desencanto do diplomata brasileiro, desde cedo encantado com a língua e com as obras alemãs, ao se deparar com a realidade política do país de Goethe e de Thomas Mann (SOETHE, 2005, p. 294). No que diz respeito à questão do mal, na contemporaneidade, filósofos como Paul Ricoeur, que se dedicou a compreender e explicitar as simbologias do mal, trazem o tema à discussão, alertando-nos que “Todo mal é mal moral, todo mal é mal cometido. Não se trata mais de discutir de onde vem o mal?, mas de esclarecer por que fazemos o mal?” (RICOEUR, 1988, p. 9). O questionamento, de certo modo, pressupõe busca de compreensões outras. Em entrevista sobre a Literatura e o Mal, em 1958, Georges Bataille remete à relação entre tais elementos, em especial por podermos ser apresentados a questões existenciais mais violentamente em obras literárias. Desse modo, evidencia-se o quanto o tema pode ser identificado em narrativas, ao longo da história da literatura, seja em Antígona e Medeia, tragédias gregas, ou mesmo em A divina comédia humana, poema de cunho épico. Ainda em peças de teatro, como Macbeth e em romances, tais quais Frankestein e Em busca do tempo perdido, apontado o potencial da literatura no que diz respeito à apresentação das tendências humanas ao mal. Esse projeto, portanto, levará a uma reflexão contundente sobre como a obra de Guimarães Rosa, assim como uma série de obras literárias de épocas e lugares distintos da história, possibilitando estudar o tema do mal, em suas várias facetas, nessa busca à própria ação do homem e aos caminhos tomados. Seja ocultando ou exibindo, sem pudor, é evidente que o mal se torna protagonista em certas obras literárias que seguiram até o nosso século. Buscaremos contribuir para a fortuna crítica de Guimarães Rosa, especialmente de Primeiras Estórias (1962), Tutameia (1967) e Ave, Palavra (1970), problematizando as figurações do mal no que diz respeito a perspectivas tanto filosóficas quando sociopolíticas, analisando as implicações estéticas e temáticas. Um olhar pouco analítico pode compreender certa relativização moral no que se refere a essa possibilidade interpretativa, posto o cenário que se apresenta em O mau Humor de Wotan, A senhora dos segredos e A velha: não apenas o da Segunda Guerra Mundial, como o da ascensão do Nazionalsocialismus de Hitler. Não é isto, porém, que se pretende, ainda que busquemos em Ricoeur certa base a qual nos direciona à reflexão de que “em qualquer hipótese, a humanidade do homem é o espaço em que se manifesta o mal” (1982, p. 18). Parte do corpus até então selecionado nos leva à hitlerocidade, para destacar o neologismo de Rosa, “problematizando, na verdade, questões da sociedade e contexto político em que vivia” (SOETHE, 2005, p. 297), como em O mau humor de Wotan, conto no qual o personagem que havia prestado serviço militar, Hans-Helmut Heubel, em conversa sobre a guerra se faz indiferente e é delatado por amigos, retornando ao front e falecendo. Pacifista, quando comparado aos entusiastas do partido, ainda que lido que ele “Formara-se o menos belicoso dos homens” (ROSA, 1985, p. 917), Heubel fora soldado nazista. Dessa maneira, defendemos que na obra de Guimarães perpassam nuanças diversas do mal, em um imbricado que se revela para além de uma visão metafísica do mundo, mas que se vê em questões sociopolíticas – sempre pressupondo uma atenção maior no que diz respeito à compreensão do que rege cada ação e cada posicionamento dos personagens rosianos, expondo sua curiosidade por desvendar a condição humana. Quando pensamos o mal mais precisamente relacionado ao viés da literatura, tal categoria, como qualquer outra, toma as mais diversas possibilidades. Em A literatura e o mal, o crítico literário Georges Bataille reflete acerca disso, dessa fluidez às peculiaridades a dependerem de cada autor e de cada mundo da obra. Cabe pensar, portanto, que cada mundo de cada obra pode oferecer sua própria manifestação do mal, que pode se referir à perspectiva de um narrador ou de um personagem em particular, com sua “carga” em torno de questões sociais, morais e de suas delimitações sobre o que seria o mal e, portanto, o que não seria. Em O mal: um desafio à filosofia à teologia, obra que se trata de uma conferência proferida na Faculdade de Teologia da Universidade de Lausanneem, em 1985, o filósofo se propõe a “juntar o trabalho do pensar suscitado pelo enigma do mal às respostas da ação e do sentimento” (RICOEUR, 1988, p. 22). Trazendo o humano ao centro das questões em torno da própria busca de sentido quanto ao mal, já em Finitude e culpabilidade: O homem falível, Paul Ricoeur trata da conceituação da noção de “falibilidade”, apontando a possibilidade de “que o homem é constitucionalmente frágil, de que pode cair”, como uma ideia “totalmente acessível à reflexão pura e assinala uma característica do ser humano” (RICOEUR, apud COSTA, 2008, p. 25) posto em cheque por uma série de entraves e desvios inerentes à sua condição – vê-se como característico do ser a própria possibilidade da queda, como se relacionando à análise de Suzi Sperber sobre as narrativas em torno dos pactos. Essa fragilidade constituinte parece-nos se tratar de embasamento fundamental para investigar a categoria do mal. No que diz respeito às condições de obediências enquanto personagens que representam a supremacia da função à ética, como no caso dos delatores do soldado de O mau humor de Wotan, talvez caiba uma análise do mal a luz da lógica da burocracia versada no polêmico Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, da filósofa Hannah Arendt, em uma articulação da própria condição do protagonista – de soldado nazista a “inimigo objetivo”, passando pela delação ao alto escalão, que só nas entrelinhas é percebido, o que acontece com certa similaridade nos contos A senhora dos segredos e A velha. Essa perspectiva se aproxima das leituras de Márcio Seligmann-Silva, professor de crítica literária da UNICAMP, agora sobre Grande Sertão: Veredas, vendo o testemunho por parte do narrador ao senhor que ouve a narrativa “Quase diálogo e quase monólogo” (SANTIAGO, 2017, p. 63). Nesse sentido, analisar o mal em suas nuanças tem como prerrogativa compreender a perspectiva de quem aponta ou não algo como mal, tais autores serão importantes para elaborarmos essa pesquisa. Com a finalidade de identificarmos e estudarmos a fundo certas estruturas, tanto em relação ao posicionamento político quanto às questões teológico-filosóficas, nos textos que aqui temos pontuado, será fundamental empreender uma pesquisa, como já expresso, com base em alguns pressupostos filosóficos e critico-literários os quais nos permitam perceber questões imprescindíveis sobre o mal. Para tal, será necessário recorrer a textos como Representações do bem e do mal em perspectiva teológico-literária: Reflexões a partir de diálogo com Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosa do professor Antonio Carlos Melo Magalhães (2003) e, como dito, é preciso recorrer a textos considerados fundamentais no que diz respeito à categoria, como Sobre o mal, de Santo Tomás de Aquino e também a obras contemporâneas como as de Paul Ricoeur; além de inúmeros trabalhos no campo da crítica literária que se voltam para a questão, destacando aqui o de Georges Bataille, com A literatura e o mal, dentre outras produções que se puseram a investigar este problema que circunda o pensamento humano desde a mais tenra idade da humanidade. Em outras palavras, foi e é longo o caminho quando se pensa em uma análise que se relacione ao mal. Nota-se, assim, que existe uma variedade de fontes ligadas às problemáticas lançadas por esta proposta de pesquisa e também de possibilidades de analisar a perspectiva de figurações do mal, partindo de personagens na obra de Guimarães Rosa que ‘margeiam’ o mal, presumindo que iremos nos deparar com um mosaico complexo no que respeita à tradicional bifurcação antonímia. Dessa forma, visto que o foco principal será o de analisar questões, já citadas,  na contística e na cronística de João Guimarães Rosa, buscaremos dialogar, ao longo da construção da pesquisa, no que diz respeito ao estudo acerca do mal, com os estudos de Bataille (1989), São Tomás de Aquino (2005), Hannah Arendt (1999), Ricoeur (1988), e no que diz respeito aos estudos acerca dos conceitos que se relacionam às leituras de obras de Guimarães, enfatizando, claro, nosso objeto de estudo, cabe dialogar com a produção de Magalhães (2003), Soethe (2005), Jaime Ginzburg (2006), Seligmann-Silva (2009) e Silviano Santiago (2017), além de ficar em aberto a possibilidade de serem encontrados e problematizados outros trabalhos acadêmicos relevantes sobre a obra de Guimarães Rosa, bem como novas fundamentações teóricas encontradas ao caminhar da pesquisa. Para realizar um estudo literário desse porte, que estabeleça uma relação bastante profícua com discussões levadas a cabo pela crítica e pela teoria literárias, será importante levar em conta que qualquer pesquisador, diante de uma fonte tão rica como a escrita de Guimarães Rosa, geralmente constrói sua metodologia quando, após releituras e entrecruzamento das obras literárias, há um aprofundamento na busca pelas possíveis conexões e dissensões a respeito da tradição crítica e de seus contrapontos possíveis e até necessários. Assim, prezarei sempre por desvelar as relações entre as figurações do mal, e mesmo do maligno, considerando a proposta de multiplicidade que se revela na obra de Rosa. Além disso, linha do projeto baseia-se nos estudos da hermenêutica e da crítica literária, o que significa que, para a realização de nossa pesquisa Nuanças do mal na obra de Guimarães Rosa será necessário pensar, desde já, uma escrita que privilegie a análise crítica.

Patrícia Valéria Vieira da Costa


NARRATIVAS DA CRISE DO PATRIARCADO: QUANDO A EXPRESSÃO REGIONAL IMPULSIONA O TRÁGICO

Patrícia Valéria Vieira da Costa

Doutoranda em Literatura e Interculturalidade (UEPB)

 

Resumo:

O presente estudo, pertencente à linha de pesquisa Literatura e Hermenêutica do curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade- Universidade estadual da Paraíba, se propõe a defender a tese de que as narrativas da Literatura Brasileira contemporânea produzidas no Nordeste, ao recriarem o patriarcado em crise, problematizam a região enquanto impulso para o trágico. Acreditamos que as narrativas escolhidas são capazes de recriar simbolicamente o espaço ficcional como um motivador direto da condição trágica das mulheres nelas representadas, manifestas por meio de mecanismos como a loucura, ensimesmamento, solidão e morte. Os romances escolhidos como corpus desse estudo foram selecionados pelo critério da presença temática, compatível e perceptível em ambas as narrativas selecionadas, o que justifica a necessidade de problematização em compreender a reincidência dessa em ambos. Em O Anjo do Quarto Dia (2013), uma das personagens femininas de mais evidência na narrativa, Ana, tem sua perspectiva de futuro completamente ceifada pela impossibilidade de manter seu relacionamento amoroso, já que seu autoritário pai impede o relacionamento assassinando Zé Moleque, o “negrinho boiadeiro” que engravidara a filha, assim como o bebê, fruto da relação. Como consequência, Ana se exila, levando uma vida solitária e reclusa que se quer trágica. Em Cartilha do Silêncio (1997), a personagem Dona Senhora tem sua existência marcada tragicamente pela loucura. Após a morte do marido, em consonância com a impossibilidade de levar adiante os negócios da família, reflexo da falta de oportunidade para apreender tais manejos, essa personagem enlouquece, sendo levada para um hospício recifense.  No romance Liturgia do Fim (2016), a loucura volta à tona, agora redesenhada pela Tia Florinda que, tendo vivenciado um relacionamento incestuoso com seu irmão, enlouquece, enquanto esse continua sendo o patriarca respeitado e temido pela família. Já em Faca (2009), no conto Mentira de amor, por exemplo, a personagem Delmira vivia acostumada à sua prisão domiciliar, até assassinar seu marido e, por isso, tornar-se uma criminosa, em uma espécie de continuidade de sua “morte social”. Em Vasto Mundo (2015), por fim, encontramos a personagem Dona Eulália, que experencia a liberdade dos mandos e desmandos de sua vida enquanto seu marido está fora, sendo completamente reprimida e ainda mais silenciada quando esse retorna ao seio familiar. Essas narrativas apontam, cada qual à sua maneira, reincidências temáticas. Todas elas fazem parte das narrativas contemporâneas ambientadas em solo rural que recriam o que aqui chamamos de “patriarcado em crise”, uma fase histórico-social em que esse sistema entra em decadência, e as oportunidades da perspectiva de vida moderna começam a entrar em vigor, motivando mudanças tanto comportamentais, quanto subjetivas. Nesse contexto, as narrativas acima citadas recriam mulheres enquanto sujeitos que, no ritmo das mudanças, tende a acompanhá-las, mas são conseguem, impossibilitadas ainda pela opressão do sistema patriarcal no qual estão inseridas.  Essa impossibilidade, além de evidenciar a opressão direcionada a essas, funciona como uma espécie de castigo, já que sua realidade negativa é aprimorada pela loucura, como em Cartilha do Silêncio (1997) e Liturgia do fim (2016); reclusão e ensimesmamento, como em O anjo do quarto dia (2013); Crime, como em Faca (2009); e silenciamento, como em Vasto Mundo (2015), condições trágicas completamente correlacionadas ao contexto sócio histórico e cultural no qual essas mulheres estão inseridas. Para Willians (2002) o trágico, enquanto tema, é recriado na atualidade como expressão do homem na sua dor e violência, e segue o fluxo das mudanças históricas. Nesse sentido, o contexto do trágico passa a ser cultural, e seu funcionamento interligado aos contextos históricos culturais. Nesse contexto, a perspectiva dada pelo teórico acima nos auxilia na possível intepretação de que as diversas formas de sofrimento pelas quais as personagens das narrativas acima sofrem refletem o trágico de suas existências, completamente motivado pela região (enquanto espaço e tempo social), a qual pertencem. O trabalho se faz pertinente, portanto, já que possibilita pensar, na análise interdiscursiva entre as personagens e na persistência temática ampla, a questão da região enquanto impulso para o trágico. Como hipótese central, consideramos que a Literatura brasileira contemporânea produzida no Nordeste, dentre outras temáticas, ainda dá margem para recriação de narrativas ambientadas em solo rural com ênfase no sistema patriarcal em crise e seus decorrentes mecanismos de opressão, já que as obras estão locadas em um tempo social em que a tradição e a modernidade estão em embate: o novo solicitando espaço, enquanto que a tradição luta para permanecer em seu lugar outrora demarcado. Nesse sentido, essas obras problematizam a questão da regionalidade na perspectiva proposta por Chiappinni (2013), já que possibilitam pensar a região em sua amplitude simbólica.  Por dar ênfase à questão da cultura e formação de identidades, a hipótese central acabar por desdobrar-se em outras: A do trágico enquanto mecanismo impulsionado pela região, em uma perspectiva que se aproxima do que Willians (2002) coloca como trágico social, já que está relacionado às condições de vida em sociedade e suas consequências subjetivas no constructo do homem; Considerando o corpus escolhido, há a hipótese de que a mulher representada nessas literaturas, ao tentarem romper com as estruturas de seu contexto social, são violentadas, inseridas em um meio que se quer trágico se  consideradas suas diversas nuances, como o silenciamento, solidão, morte, inação, etc. Essa hipótese ganha força ao consideramos a reflexão proposta por Sarrazac (2007), ao considerar como condições trágicas mais propícias para a manifestação do trágico moderno os sofrimentos do homem comum, distante dos grandes heróis da tragédia de outrora, e mais próximo dos “heróis” das narrativas contemporâneas. Esse estudo se faz pertinente já que abre possibilidades tanto pora ampliar a fortuna crítica de autores relevantes, porém ainda não muito pesquisados, quanto por enriquecer os estudos na área da Literatura e Interculturalidade, já que propomos uma análise interdiscursiva entre um leque de autores contemporâneos do Nordeste. Ademais, nossa pesquisa torna-se original por propor um estudo temático que possibilita uma visão ampla de um contexto de produção, tornando-se relevante por contribuir para a compreensão do funcionamento e da multiplicidade de produções no contexto da Literatura Brasileira Contemporânea. Por fim, como pressupostos teóricos basilares referenciamos Willlians (2002), Sarrazac (2007) e Chiappinni (2013).

Palavras-chave: Crise do patriarcado. Expressão regional. Trágico.

Silvanna Kelly Gomes de Oliveira


O TRABALHO IMATERIAL DOS PERSONAGENS SECUNDÁRIOS NA OBRA DE MARIA JOSÉ SILVEIRA

Autora: Silvanna Kelly Gomes de Oliveira

Orientador: Prof. Dr. Luciano Barbosa Justino

 

RESUMO EXPANDIDO

 

Para além da problemática sobre o lugar que o campo literário ocupa no cenário contemporâneo, é necessário aludir de antemão ao contexto biopolítico pensado através da crise do capitalismo mundial engendrada desde a década de 1970. É sabido que seu ponto de culminância resultou em várias transformações na sociedade, dentre elas a ressignificação do sujeito individual, o qual não pôde mais se ver dissociado dos processos materiais produzidos pela grande máquina do Estado. Desse modo, o indivíduo passou a se sentir parte do maquinário capitalista, atribuindo a si mesmo a responsabilidade pelo fracasso político, econômico e social da nação, gerando, também, uma crise da própria noção de identidade. Junto a essa perspectiva de “depressão social”, surge o trabalho intelectual atrelado a essas transformações, borrando, em contrapartida, a cisão estabelecida entre trabalho material e imaterial.

O trabalho imaterial, por sua vez, pode ser referenciado como “produção de subjetividade”, o que inclui as artes, dentre elas a literatura. Diante da crise supracitada, não há diferenciação entre essa nova produção e a economia e política, já que aquela ocupa lugar central no funcionamento do capitalismo. Com o trabalho intelectual, existe tanto a construção de sujeitos individuados que se fixam em uma identidade – corpo, gênero etc –, o que no neoliberalismo é assumido por expressões como “capital humano” e “empresário de si”; quanto existe o desmonte do sujeito individuado e suas representações, correspondendo, logo, a um processo de dessubjetivação no qual máquina e homem constituem engrenagens intercambiáveis de uma estrutura produtiva. Para o primeiro dá-se o nome de “sujeição social”, e para o segundo, “servidão maquínica”, como aborda Lazzarato (2014).

Ao tratarmos do trabalho imaterial como ponto de partida para os estudos literários, nos referimos também à conquista da autonomia desses estudos, momento em que o termo “literatura”, vinculado às teorias e críticas das obras literárias, ganha vigor, há cerca de dois séculos, com o advento do Romantismo. Essa autonomia literária traz para o cerne da discussão conceitos como “unidade” e “identidade”, os quais perpassam desde o plano político da consolidação do Estado-nação no capitalismo até o plano da construção da individualidade do sujeito (LAZZARATO, 2014). Dessa maneira, são conceitos políticos que não se dissociam da leitura imanente da obra, explicando o fato de a literatura ser uma arte abrangente e extremamente política.

Sob esta perspectiva, é comum encontrar modos tautológicos de ler as obras, isto é, repetitivos e alheios às novas demandas da literatura contemporânea, exercendo a domesticação das “multidões” presentes nessas narrativas e vertendo pela unicidade narcísica. Por essa razão, as singularidades presentes nos encontros múltiplos dos personagens, de uma narrativa passam ao largo dessa crítica identitária, cuja sujeição social e servidão maquínica direcionam seus métodos de análise. O resultado disso consiste no apagamento dos personagens secundários, repletos de trabalho imaterial, entretanto, invisibilizados pelas pesquisas e leituras. Não é por acaso que comumente encontramos nessas pesquisas uma força centrípeta ao protagonismo, uma centralidade no narrador, uma leitura estigmatizante dos subalternos e até uma focalização no trabalho material que tipificam os secundários nas obras (JUSTINO, 2017).

A produção de linguagem não deve, portanto, ser entregue à “sedução” de estar em um segundo plano, pois ela é potente, tendo em vista que também é trabalho produtivo. Nesse sentido, precisamos voltar às obras com um olhar mais alargado, no que concerne à desobstrução dos caminhos que pré-determinam um tipo de leitura dominante. O discurso literário atua como uma semiótica linguageira, na medida em que perpassa os mais diversos discursos, podendo ser o único capaz de abranger os possíveis encontros – materiais e imateriais – em um mesmo ethos significante. Já as semióticas simbólicas podem ser tidas como pré-significantes, gestuais, rituais, produtivas, corporais, musicais etc, traçando um raciocínio oriundo das considerações de Guatarri (2000). As relações políticas, de classe, gênero, de etnia devem ser problematizadas, desse modo, a partir dessa “nova economia do saber” que também é produção de riqueza.

Para tanto, cabe a nós turbilhonarmos o status quo: sabendo que a obra literária pode quebrar as produções de subjetividades dominantes ao se posicionar diante da modelização dos sujeitos por um dispositivo maior que é a servidão maquínica, de que forma a produção contemporânea de Maria José Silveira semiotizada pela multidão e seus devires da diferença serve para desestabilizar um modo de produção de subjetividade facilmente apreensível pela servidão, a qual faz o uso do sistema significante, dificilmente questionado? Sendo a crítica tautológica a mais comum nos estudos literários, como inverter os caminhos para novos questionamentos que vão para além dos critérios estéticos – presos à linguagem – e dos matizes humanistas, enfrentando as novas condições de subjetivação e rompendo com a servidão maquínica e sujeição social do capitalismo contemporâneo, como aponta Lazzarato (2014)?

Partindo destas questões centrais, nos deparamos com outras questões mais específicas: Primeiro, aquilo que chamamos de trabalho imaterial na obra de Maria José Silveira pode ser observado à revelia do sujeito individuado – protagonismo/ narrador como centro – e estudado sob a abordagem de seus muitos, em uma “babel” de possibilidades suscitadas personagens secundários? Segundo, o aparecimento de personagens transgêneros, indígenas, militantes, prostitutas, motoboys, nordestinos servem para reforçar os estigmas promovidos pela servidão maquínica ou para quebrá-los através de suas singularidades potentes, ressurgindo como sujeitos que ocupam lugares além da mera “sombra” dos protagonistas e das funções que remetem força corporal? Terceiro, havendo uma crítica tradicional e, sobretudo, contemporânea que comumente reforça identidades dos personagens “sem mobilidade”, o que corrobora estigmas, esse fato poderia explicar o efeito excludente de apagamento dos sujeitos ficcionais secundarizados, bem como a escassez de pesquisas que abordem os interstícios das obras e a horizontalidade de seus personagens?

No intuito de corporificar a pesquisa, elegemos como objeto de análise as obras: Pauliceia de mil dentes, publicada pela editora Prumo no ano de 2012, Guerra no coração cerrado, publicada pela Editora Record no ano de 2006 e O fantasma de Luis Buñuel, publicada pela editora Francis no ano de 2004, todas elas pertencentes a escritora goiana Maria José Silveira. A escolha desses textos se deu em razão de nosso intento em traçar um panorama mais alargado no que tange à formulação de um trabalho imaterial produzido ricamente pelo considerável número de personagens secundários nos três volumes.

Assim, o objetivo geral da tese é apontar o trabalho imaterial dos personagens secundários da obra de Maria José Silveira como forma de propor um método mais alargado de abordagem crítica. Quanto aos objetivos específicos, pretende-se lançar uma metacrítica que problematize tanto a tradição literária quanto a crítica contemporânea no que concerne ao tratamento do trabalho imaterial; apresentar como a sujeição individual e a servidão maquínica podem direcionar de modo predominante a leitura das obras literárias; identificar nas obras literárias selecionadas de Maria José Silveira a produção de trabalho imaterial como rasura na crítica literária; analisar, no plano do significante, como a construção diegética da autora abre margem para a quebra dos estigmas identitários dos personagens secundários; sugerir um novo estatuto da crítica, lançando mão das potências dos personagens secundários.

De modo mais específico, recorreremos a uma abordagem interpretativa com foco em três procedimentos metodológicos: 1) levantamento dos textos de crítica literária que apresentem lacunas para as potencialidades inerentes às produções literárias; 2) problematização e efeitos da sujeição social e servidão maquínica nas abordagens, levando em consideração a contramão da obra de Maria José Silveira e seus personagens secundários, força-motriz; 3) sugestão de um novo método de abordagem literária, a partir da produção de subjetividade dos coadjuvantes expressa nas três obras de Maria José Silveira: Pauliceia de mil dentes, Guerra no coração do cerrado e O fantasma de Luis Buñuel.

Nesse sentido, a originalidade deste estudo reside na proposta de se estudar esta autora em uma maior amplitude, partindo para uma leitura ainda mais verticalizada do que foi proposto para a dissertação de mestrado, também sobre ela, e argumentando-se que em sua obra é apresentada uma narrativa de muitos agenciamentos possíveis, o que ressalta o movimento que se pretende na tese. O intuito, por fim, é vislumbrar as ausências no arcabouço crítico que não contemplam os interstícios de sua diegese, a partir dos “pequenos encontros” dotados ou não de silêncio e das potencialidades dos personagens secundários, que fazem parte de uma grande rede de possibilidades. Atente-se para o fato de que estes aspectos supracitados, comum nas três narrativas postas para análise, nunca foram estudados, o que reforça a originalidade da temática que se pretende aqui investigar.

 Sílvia Jussara Barbosa dos Santos Domingos 


Voz e Silêncio: os gritos dos subalternos no testemunho de Nava em Galo das Trevas

 

Doutoranda: Sílvia Jussara Barbosa dos Santos Domingos

Orientadora: Profa. Dra. Geralda Medeiros Nóbrega

 

Campina Grande – 2018

RESUMO

Pedro Nava é um autor da contemporaneidade que se especializou no texto autobiográfico. Médico de profissão escreveu suas lembranças no gênero memorialístico como um escape terapêutico: “escrever memórias é libertar-se, é fugir. Temos dois terrores, a lembrança do passado e o medo do futuro. Pelo menos um, a lembrança do passado, é anulado pela catarse de passá-la para o papel”. (NAVA, 2012, p. 7. Baú de Ossos). Nava começou a escrever suas memórias perto dos 65 anos, quando estava quase se aposentando da medicina, o reumatologista de sucesso começou a escrever no dia 1º de fevereiro de 1968 até o seu suicídio, em 13 de maio de 1984, aos 81 anos de idade. Pedro Nava nasceu em Juiz de Fora em 1903 e obteve reconhecimento literário a partir de 1972, com o início da publicação de suas memórias, pelas quais recebeu diversos prêmios. Publicou, em sequência, os volumes Baú de Ossos; Balão Cativo; Chão de Ferro; Beira-Mar; Galo das Trevas e Círio Perfeito.

Propomos investigar, sob a ótica da teoria da literatura de testemunho, em que medida o testemunho de Pedro Nava, relatado pelas memórias do narrador Egon, durante os acontecimentos da Revolução de 30 traduzem, apresentam e representam as vozes sociais dos esquecidos, silenciados, vítimas e sobreviventes dessa cena traumática. A escolha da obra, Galo das Trevas, se justifica por trazer, entre tantas, umas das cenas revolucionárias da nossa história, a Revolução de 30, que deixou marcas “indeléveis” em sua geração, principalmente na sociedade do campo, onde Nava exercia a medicina.

Baseamo-nos nas seguintes hipóteses para desenvolvermos a investigação acerca da temática:

  • Acreditamos que o núcleo do narrável, nas memórias, equivale à transformação do indivíduo, daí que o autor Nava e o narrador alter ego Egon, em Galo das trevas, problematizam a noção de identidade da própria voz narrativa;
  • Segundo Diane Klinger, a autobiografia é uma “ficção de si”. Pressupomos que Nava, ao mudar o foco narrativo na segunda parte da obra cria um romance da sua vida;
  • Através da evocação de suas memórias, o autor dá voz à multidão silenciada e esquecida do passado, mas também assume a sua própria voz;
  • Ao assumir sua voz assume também o testemunho, aquilo que presenciou e que trouxe um dano a si e aos outros. Esse testemunho é evocado, na obra, como uma forma de indenização às vítimas e sobreviventes, mas é, também, uma reflexão e reconstrução da identidade dos grupos sociais envolvidos e do próprio narrador;  
  • Em toda obra autobiográfica, conforme alguns estudos atuais que tratam da “volta do autor”, o narrador pretende falar de fatos ocorridos consigo e não escapa de sugerir, ao leitor, uma imagem de si, imagem que é construída no ato mesmo de se relatar as memórias. Sendo assim, na primeira parte da obra em que o autor se faz narrador personagem, há a construção de um ethos que corrobora para a identidade desse narrador;
  • A evocação memorialística e testemunhal dos acontecimentos durante a Revolução de 30 poderá explicitar em que medida tal fato marcou a vida do autor e de outros sobreviventes relembrados na obra;
  • A autobiografia, especificamente as Memórias, como espaço literário para a evocação de eventos do passado, quando posto sob a ótica da teoria da Literatura de Testemunho pode se constituir num campo de subjetividade também, não de uma subjetividade individual da vivência, mas do “eu” coletivo da testemunha. Nava não fala só, não relata só, na voz do autor há a união de outras vozes que testemunham e que também vivenciaram o evento, a cena.

Nossa tese é que as memórias de Pedro Nava, em Galo das Trevas, traduzem, apresentam e representam, de forma testemunhal, as vozes sociais dos esquecidos e silenciados, bem como a dele mesmo, como maneira de requerimento indenitário e de construção identitária desses vitimados e sobreviventes da Revolução de 30. Ao se utilizar do alter ego José Egon, como narrador da segunda parte da obra, o autor cria uma problemática que traduz o seguinte: é Egon as vozes uníssonas dos sobreviventes à Revolução e marcados por ela, e, ao mesmo tempo, é a voz do próprio Nava como a voz-testemunhal que denuncia os efeitos do evento e conta uma parte da história do Brasil. Ambas se unem para trazer de volta o silêncio dos corpos marcados pela Revolução e que agora gritam sua dor.

Assim, traçamos o seguinte objetivo geral: investigar na obra Galo das Trevas, quinto volume das autobiografias de Pedro Nava, como memórias e testemunhos podem trazer para o presente as vozes sociais, antes silenciadas e esquecidas, para denunciar os traumas vivenciados durante a Revolução de 30, no Brasil pré-ditadura militar, e requererem indenização através do texto literário, assim como reconstruírem sua identidade burlada. Deste, extraímos os seguintes específicos:

  • Discorrer sobre alguns aspectos do gênero memorialístico, a teoria da literatura de testemunho, e a concepção de arte enquanto partilha da ética e da estética;
  • Analisar como se apresentam as vozes coletivas e a voz do próprio autor para testemunhar situações do passado que eventuaram traumas;
  • Apresentar de que forma as memórias e o teor testemunhal, na obra, produzem meios de requerimento indenitários aos sobreviventes de um evento traumático do passado;
  • Comprovar que através da escrita de si e dos outros, o narrador assume o que fala, dá voz ao silenciado e, assim, constrói, de maneira subjetivamente coletiva, a identidade sua e a dos outros;
  • Postular que as memórias de Nava e o teor testemunhal na obra Galo das Trevas, entre tantos aspectos, realizam no autor e no leitor uma catarse e uma mudança interior para uma nova leitura acerca da Revolução de 30.

Fundamentamos, inicialmente, o trabalho de pesquisa nos autores dispostos nos capítulos a seguir, de maneira provisoriamente.

INTRODUÇÃO

CAPÍTULO 1- As Memórias Literárias como aporte para as escritas de si e do outro

1.1 Contextualização dos sete volumes de memórias de Pedro Nava

1.2  As escritas de si e as memórias como o grande espetáculo de si (Paula Sibilia, Diane Klinger, Guy Debord, entre outros)

1.3 – O narrar-se a si mesmo como lugar de transgressão

1.4 A geograficidade como constituição do eu nas memórias de Nava (Marandola e Gratão – Geografia e Literatura, Deleuze e Guattari – Mil Platôs, entre outros)

CAPÍTULO 2 – O Teor Testemunhal em Egon: o narrador que presenciou a cena do trauma

2.1 – A constituição do narrador memorialístico de voz terceira (Maria Lúcia Dal Farra)

2.2 – O Eu-Outro que se desterritorializa

2.3 – Literatura de testemunho e memórias que testemunham (Seligmann-Silva e Maurício Halbwachs)

2.4 – História e Revolução nas memórias de Galo das Trevas e O Círio Perfeito (Decca e outros)

CAPÍTULO 3 – Vozes que gritam uníssonas: Nava e os silenciados

3.1 –  Ditos e não-ditos, silêncio e discursos polifônicos ( Bakhtin, Walter Benjamin, Paul Ricoeur)

CAPÍTULO 4 – Identidades Burladas que se (re)constituem

4.1 As vozes dos subalternos na obra e seu duelo com a voz de Nava

Metodologicamente, este trabalho propõe uma investigação, antes bibliográfica, para a constatação e confronto do que se tem percebido nos estudos anteriores acerca das Escritas de si – memórias, diários, autobiografias, etc – e da Literatura de Testemunho como teoria de base para a pesquisa. Pretendemos analisar o que, teoricamente, já se tem postulado. Contudo, propomos, a partir do que observarmos, um caminho próprio para a construção e defesa da tese em Galo das Trevas, de Pedro Nava. Esta investigação pretende-se, então, a uma pesquisa qualitativa e bibliográfica.

Usaremos, nesta atividade investigativa, os pressupostos teóricos das Escritas de si e da Literatura de Testemunho. A abordagem se dará no cruzamento entre o gênero Memórias e o Testemunho. O corpus se configura no gênero autobiográfico, quinto volume das memórias de Pedro Nava, Galo das Trevas.

Provemo-nos das hipóteses citadas no início deste projeto e que devam contribuir como categorias para a averiguação da temática na obra.

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 Valécio Irineu Barros


PADRÕES DE AGENCIAMENTOS SUBJETIVOS NOS ROMANCES DA ESCRITORA NIGERIANA CHIMAMANDA NGOZI ADICHIE

 

Valécio Irineu Barros

Dra. Francisca Zuleide Duarte de Souza (orientadora)∗∗

 

PALAVRAS-CHAVE: Pós-Colonial. Adichie. Identidade. Agenciamento Subjetivo.

INTRODUÇÃO

Inserida no campo dos Estudos Culturais e Pós-Coloniais sobre a produção literária africana, particularmente a anglófona, esta pesquisa busca refletir sobre processos de representação identitária e agenciamentos subjetivos na obra de Chimamanda Ngozi Adichie, escritora que retrata a luta e a resistência contra a herança colonial numa ex-colônia de ocupação/invasão da África Ocidental, a Nigéria, convulsionada por revoluções, conflitos étnicos e por uma malfadada guerra de secessão (a Guerra de Biafra).

Com base em um recorte nos Estudos de Construção da Identidade/Subjetividade, a partir de uma experiência de exílio doméstico e/ou exterior, serão analisados os romances: Purple Hibiscus / Hibisco Roxo (2003), Half of a Yellow Sun / Meio Sol Amarelo (2006) e Americanah (2013), com foco no papel da vivência em núcleos da família extensa ou outros tipos de configuração familiar como etapa fundamental no processo de construção identitária/agenciamento subjetivo de personagens que transitam da  familiar nuclear para uma integração na comunidade cultural e nacional.

OBJETIVO

A pesquisa defende a tese de que nos romances que constituem seu corpus de análise, a construção identitária das personagens costuma se dar através de um processo de afastamento progressivo do círculo familiar, inicialmente para um núcleo da família extensa e/ou outro tipo de configuração familiar e, finalmente, rumo a uma (re)integração à comunidade nacional (nigeriana).

Nesse sentido, seu objetivo principal é rastrear os padrões deste percurso,  de modo a responder à seguinte pergunta: como se dá o processo de construção identitária/agenciamento subjetivo nos romances da escritora Chimamanda Ngozi Adichie?

METODOLOGIA

A fim de identificar as etapas do processo supracitado, esta pesquisa parte de um enfoque pós-colonial e utiliza o método bibliográfico, além de lançar mão de conceitos como literatura menor, desterritorialização, devir e agenciamento subjetivo (Deleuze & Guattari); deslocamento cultural e movimentação diaspórica (Bhabha); comunidades imaginadas (Anderson); cultura (Eagleton; Bauman) e identidade (Hall; Bauman).

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Embora se encontre numa fase preliminar, já é possível identificar alguns movimentos de construção identitária/agenciamento subjetivo nas obras estudadas, a saber:

No romance inaugural de Chimanda Ngozi Adichie, Purple Hibiscus / O Hibisco Roxo – a protagonista (Kambili Achike) encontra em um núcleo de sua família extensa (a casa de sua tia Ifeoma), a base para sua construção identitária antes de se (re)integrar em sua comunidade.

Um processo semelhante se dá em Half of a Yellow Sun / Meio Sol Amarelo — romance que constitui o principal objeto de análise dessa pesquisa — uma vez que tanto Ugwu, quanto Olana vivenciam etapas em outros núcleos fora da família original, antes de se integrar a um projeto comunitário maior (A República de Biafra). Olana quando vive com os tios no norte do país e, posteriormente, com Odenigbo e Baby. Ugwu, quando passa a viver em Nsukka como criado de Odenigbo e, posteriormente, de Olana e Baby.

Finalmente, em seu último romance, Americanah, Ifemelu e Obinze passam por comunidades diferentes: ela, quando vai morar com a tia e depois sozinha, nos Estados Unidos; ele passa va viver e trabalhar na Inglaterra como clandestino. Só depois de experimentarem essas vivências e reconfigurar suas subjetividades, estas personagens se (re)integram à comunidade nacional nigeriana.

CONCLUSÕES PROVISÓRIAS

A obra de Chimamanda Ngozi Adichie se insere claramente no que Deleuze & Guattari (2014) classificam como literatura menor, que não deve ser entendida no sentido pejorativo de literatura produzida em uma “língua menor” ou “menos favorecida”, mas antes como “o que uma minoria faz em uma língua maior” (p. 35), no caso específico de Chimamanda Ngozi Adichie, o que uma escritora africana faz dentro de uma tradição literária anglófona, a partir de uma comunidade periférica e pós-colonial, a Nigéria.

A análise, em fase preliminar, aponta na direção da tese proposta pela pesquisa, uma vez que as personagens, através de vários processos de desterritorialização e reterritorialização, vão reconfigurando suas identidades/subjetividades. Entretanto, a confirmação da hipótese central, dependerá de um estudo mais aprofundado e sistemático, a ser desenvolvido nos próximos dois anos.

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 Yolanda Maria da Silva


IMAGINAÇÃO CRIATIVA EM MACUNAÍMA, DE MÁRIO DE ANDRADE: ANÁLISE MITOCRÍTICA

 

Yolanda Maria da Silva

yolandamariadasilva@yahoo.com.br

 

O projeto de doutorado “Imaginação Criativa em Macunaíma, de Mário de Andrade: análise mitocrítica” é uma proposta de desdobramento da pesquisa de mestrado, intitulada “Macunaíma: uma análise mitocrítica” (2012), orientada pelo Prof. Dr. Sébastien Joachim, no Programa de Pós- Graduação em Literatura e Interculturalidade – PPGLI. O objetivo deste trabalho de desdobramento é saber se na obra de Mário de Andrade há uma redundância semântica de mitos que cerceiam objetivamente o Regime Noturno da imagem na estrutura sintética, que demonstrará a forma simbólica como a personagem Macunaíma toma os múltiplos símbolos para dar sentido à sua existência diante da passagem do tempo e da morte. A forma simbólica representada na personagem Macunaíma aponta para a cultura brasileira – no contexto de Mário de Andrade – e, também, reverbera no caos-mundo proferido pela imbricação cultural contemporânea.

Tomamos como base analítica a hermenêutica simbólica, no texto literário e nas artes, aplicando a mitocrítica e a mitanálise apresentadas por Gilbert Durand (1988). Ensejamos, também, compreender o processo de imaginação e remitologização de Mário de Andrade na construção poética da personagem Macunaíma, pertencente a primeira fase do Modernismo, que tinha como principal projeto estético encontrar o lugar da cultura brasileira diante dos diversos imaginários culturais que se constelaram neste período de época literária. “Neste sentido, é importante enfatizar que é através da cultura que o imaginário aparece plenamente – a gênese do símbolo está nas construções imaginárias culturais” (TURCHI, 2003, p. 31).

Diante desses resultados da pesquisa de mestrado, em que percebemos que a obra Macunaíma desemboca na Estrutura Antropológica do Regime Noturna da Imagem, há uma imaginação criativa pautada nos múltiplos imaginários, evidenciando a necessidade de investigar o seguinte problema: Como se dá o processo de imaginação criativa da personagem Macunaíma para resignificar sua existência diante dos múltiplos imaginários, da passagem do tempo e da vigência da morte?

Para traçarmos esse questionamento norteador, partimos das hipóteses de que: a) o Trajeto Antropológico do Regime Noturno da imagem, percebido na pesquisa de mestrado, em Macunaíma, representada o herói noturno, libidinal, nefasto, que sucumbe ao niilista; b) esse processo da Imaginação Criativa que converge na estrutura sintética do Regime Noturno da imagem se configura na identidade múltipla da personagem Macunaíma; c) o processo de Imaginação Criativa de Mário de Andrade é precursora da escrita Pós-Moderna, representando o homem fragmentado, envolto por vários imaginários culturais.

Nessa perspectiva, nosso projeto defende a tese de que Mário de Andrade usa a imaginação ativa para criar uma narrativa que situa o indivíduo brasileiro nesse conglomerado de imaginários que converge justamente no Regime Noturno da imagem, na estrutura simbólica sintética, expressando uma narrativa cíclica singular que, de acordo com os estudos defendidos por Gilbert Durand (2002), têm o objetivo de dar sentido de pertencimento ao ser no mundo que está envolto pelo “nada” e o caos, representando o devir do homem crioulo, utilizando o conceito de Édouard Glissant, ou rizomático, utilizando o conceito de Deleuze e Guattarri, que representa o ser multifacetado do caos-mundo. Diante da fragmentação e da aglutinação desses diversos imaginários, a cultura em que Macunaíma está inserido não consegue ter uma “raiz mitológica” hegemônica em seu cerne cultural e as imagens são multifacetadas. Desse modo, a rapsódia representa uma cultura heterogênea.

Sendo assim, nortearemos a tese seguindo os objetivos expostos abaixo: Pesquisar a Imaginação Criativa e o Trajeto Antropológico na obra Macunaíma: o herói sem nenhum caráter (1981; 2013), de Mário de Andrade, para comprovar que a imbricação de múltiplos imaginários, imagens simbólicas, lendas, mitos e mitemas fomentaram na personagem Macunaíma uma postura cultural crioula e rizomática, representando o homem que não segue uma cultura única como fuga simbólica, mas segue o caos-mundo cultural que lhe cerca: imaginário africano, imaginário indígena e imaginário europeu, que se constelam na narrativa.

Para isso, nos pautamos nos objetivos específicos que consistem em: compreender as imagens simbólicas na obra Macunaíma, de Mário de Andrade, catalogadas como concernentes ao Regime Noturno da imagem para compreender o Trajeto Antropológico do Imaginário da personagem; delinear uma leitura fenomenológica e hermenêutica das imagens encontradas em Macunaíma; relacionar as imagens com os mitos e lendas das culturas indígena, africana e europeia; identificar qual/quais mitos se insurge(m) e configuram o caos heterogêneo das mitologias africana, europeia e indígena que delineiam o devir literário caótico brasileiro; refletir sobre o aspecto da Imaginação Criativa e remitologização na escritura e na representação da personagem Macunaíma, que já aponta, hipoteticamente, para a interculturalidade ou a fragmentação do sujeito presente na pós-modernidade.

Para a realização da análise mitodológica do presente projeto, seguiremos uma pesquisa bibliográfica de cunho analítico fenomenológico e hermenêutico, tendo como base teórica Gilbert Durand (2002; 2001; 1996; 1982). A abordagem metodológica/mitodológica é subdividida em análise mitocrítica e mitanálise: a primeira “corresponde ao olhar que busca o denotativo; trabalha, portanto, no nível do sintagma. A segunda, ao olhar que pesquisa o conotativo; explorando, assim, o paradigma” (STRÔNGOLI, 2003, p.120). Em outras palavras, de forma sincrônica, aplicamos a mitocrítica ao texto literário, observando seus mitemas e imagens simbólicas que constituem o paradigma de um mito, para, em seguida, observar diacronicamente a obra em seu contexto histórico, social e cultual, que é o método da mitanálise.

Seguindo essas etapas, conhecemos o Trajeto Antropológico da escritura do autor e da cultura pesquisada, que mostram a constelação de imagens que giram em torno do grande tema universal da natureza humana: o combate simbólico contra a passagem do tempo e a morte. Uma vez apreendendo o Trajeto Antropológico do escritor, podemos saber se ele segue o Regime Diurno ou Regime Noturno da imagem, informando significativamente a forma como a cultura ou o indivíduo encara a vida e suas contingências.

Nesse breve percurso e pesquisa, podemos dizer que o autor engajado Mário de Andrade, no fervilhar do Modernismo, não representou uma narrativa com cultura hegemônica para caracterizar a cultura brasileira, mas buscou agregar elementos de várias culturas, transfigurando os próprios mitos e formas de linguagens vigentes para buscar a experiência de uma nova forma de linguagem e imagens simbólicas que se mostraram totalmente heterogêneas e caóticas. Mário não se prendia a verdades absolutas para delinear sua obra, seu trabalho era de experimentação e pesquisa, como afirma: “Minhas reivindicações? Liberdade. Uso dela; não abuso. Sei embridá-las nas minhas verdades filosóficas e religiosas (…) Não pretendo obrigar ninguém a seguir-me. Costumo andar sozinho” (ANDRADE, 2013, p. 67).

Em Macunaíma, podemos dizer que Mário de Andrade criou uma narrativa seguindo a estrutura sintética do Regime Noturno da imagem, porque buscou transformar a história do herói da tribo Tapanhumas em uma narrativa mítica que representasse a identidade do brasileiro. Por meio da estrutura sintética, a narrativa se torna um símbolo cíclico do indivíduo que vive o ethos da cultura plural, uma vez que as aventuras do herói representam, em suas ambivalências benéficas e trágicas, o homem inserido na heterogeneidade da cultura brasileira. Ao mostrar isto, Mário de Andrade representa, em Macunaíma, a possibilidade de vencer a angústia diante dessa situação caótica e, também, a finitude. Sobre esse aspecto, afirma o autor: “- Veja que contradição: O homem só vive para morrer. Cria para enfrentar a morte. Diz para mascarar a morte” (ANDRADE apud HÜHNE, 2002, p.86).

Na escritura da obra de Mário de Andrade, percebe-se uma constelação de imagens que formam um panteão mitológico das culturas indígena, africana e europeia que fica difícil definir qual o mito regente de nossa cultura ou se há a heterogeneidade mitológica por meio do processo da imaginação criativa e remitologização dos mitos das diversas culturas que se aglomeraram na poética do Modernismo e propiciaram a Mário de Andrade a possibilidade de criar e recriar narrativas para representar a cultura brasileira. Assim, torna-se relevante a contribuição desta pesquisa, porque almeja propiciar uma possibilidade de leitura da Estrutura Antropológica do Imaginário e da função da Imaginação Criativa representada da rapsódia de Mário de Andrade, mas primordialmente, na construção da personagem de caráter singular, ou melhor, sem nenhum caráter.

Palavras–Chave: Imaginação Criativa; Imaginário; Mitocrítica; Macunaíma.

 

Referências Bibliográficas

 

ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. 18. ed. São Paulo: Marins; Belo Horizonte: Itatiaia; 1981.

______. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. Tradução de Helder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

HÜHNE, Leda Miranda. A estética aberta de Mário de Andrade. Rio de Janeiro: UAPÊ, 2002.

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TURCHI, Maria Zaira. Literatura e antropologia do imaginário. Brasília: Editora Universitária de Brasília, 2003.  

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